sábado, 7 de janeiro de 2012

Ninguém sabe exactamente - saberá?- o que se passa


Segurança e insegurança de Mamôn
Anselmo Borges


Talvez nunca como hoje, no meio de uma confusão sem medida nem fim à vista, se tenham utilizado tanto as palavras confiança e crédito, palavras que vêm do mundo religioso. Confiança vem de fides (fiar-se de, confiar, fé) e crédito, de credere (crédito, acreditar, crer, Credo). O que falta e faz falta: confiança e crédito. Mas confiar em quê e em quem? E quem tem crédito e concede crédito?
O pior mesmo é essa falta e a confusão. Ninguém sabe exactamente - saberá?- o que se passa. E, quando não se é capaz de equacionar os problemas, como encontrar a solução? No labirinto, pululam sentenças, palpites, comentários, aldrabices, ataques, adivinhações... Saímos do euro? O euro vai acabar? Uma Europa a duas velocidades? A Europa desmorona-se? E quando se dá o crescimento da economia? Ah!, e os BRIC... E a crise de um mundo pela primeira vez verdadeiramente um só mundo! E um capitalismo selvagem e louco!
Como se chegou aqui? Aqui, é a esfola. Surpreendentemente, mesmo Jorge Sampaio foi confessando, há dias, que sabia que o país estava com sérias dificuldades, mas, "que tivéssemos chegado a isto, tão dependentes de credores, nunca tinha pensado".
Afinal, ainda há pouco, havia dinheiro para mais uma auto-estrada de Lisboa ao Porto, um novo aeroporto, alta velocidade para Madrid... De repente, a esfola. Impostos, mais impostos, cortes, mais cortes. E não se pense que tenha terminado a procissão da austeridade.
É claro que se deve honrar os compromissos e pagar as dívidas. Mas, quando olho os números, fico aterrado: este ano são mais de nove mil milhões de euros para pagar juros. Agora, a soberania está com os credores. E esta mentira toda: resgatar um país, ajoelhando-o e paralisando-o com juros! E já se não fala em pessoas, mas em mercados. As pessoas terão desaparecido? Quem as apagou do mapa?
Culpados? Nós todos. As responsabilidades não são, porém, todas iguais. Mas quem se assume como responsável? Presidentes da República, governos, a banca, autarcas, corruptos, consumidores sôfregos, professores, jornalistas... Alguém conhece alguém que se confesse responsável?
Sobretudo, é preciso ir à raiz. E lá está a Bíblia na Primeira Carta a Timóteo: "Nada trouxemos ao mundo e nada poderemos levar dele. A raiz de todos os males é a ganância do dinheiro. Arrastados por ele, muitos se enredaram em muitas aflições." E Jesus - é para essas bandas que mora a Sabedoria, o Logos, a Razão e a Bondade - disse, no contexto de um escravo não poder ser pertença de dois senhores, que Deus e Dinheiro são totalmente incompatíveis: "Não podeis servir a Deus e a Dinheiro."
Para entender este passo, a começar pela tradução, é necessário perceber a linguagem. Significativamente, o Novo Testamento, para dinheiro, utiliza a palavra Mamôn, que só aparece na boca de Jesus e que provém do verbo hemin, com o significado de crer e aceitar confiadamente. Como explica o teólogo catalão José Ignacio González Faus, o dinheiro gera uma fé de tipo religioso. Daí a sua incompatibilidade com Deus. Aliás, Jesus usa a palavra sem artigo, como se fosse um nome próprio, de tal modo que alguns manuscritos escrevem-na precisamente com maiúscula: "Não podeis servir a Deus e a Dinheiro."
O problema reside, como explicou indirectamente J. M. Keynes, na sua Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, na segurança. Os seres humanos têm medo do futuro e precisam de assegurá-lo. Tradicionalmente, essa missão estava confiada à religião. Agora, a segurança vem do dinheiro. De facto, o dinheiro abre todas as portas e compra tudo. Dá prestígio e é aquele meio que dá acesso a todos os meios - no limite, asseguraria a própria imortalidade. Ele é omnipotente como um Deus.
Por isso, González Faus diz que a legenda das notas de dólar (in God we trust) significa na realidade: in "this" God we trust ("neste" Deus, o Dinheiro, confiamos). Mas, de facto, o que deveria trazer-nos segurança trouxe-nos, como se vê, no quadro de um neoliberalismo à solta, uma insegurança global, que pode levar ao desastre.

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