quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Será que a história já não é mestra, nem sequer para a Igreja?



Leitura serena e sem preconceitos

António Marcelino

Ouvimos agora falar muito dos “valores republicanos” que, diz-se, é preciso defender e promover. Falam disto os republicanos tradicionais e os mais modernos. Fala o que resta da geração da velha carbonária. Fala a maçonaria actual e as suas lojas. Falam ministros socialistas e laicos de todas as cores. Fala-se, também, no Parlamento, em discursos políticos, em entrevistas e escritos diversos. A todos parece que a salvação do país e a solução da crise está na implementação rápida destes valores, mais do que na sua efectiva compreensão. Diz-se serem eles o legado da República, via Revolução Francesa, a bíblia dos sistemas que enchem os seus códigos com a doutrina de uma modernidade mal entendida e não travada a tempo nas limitações que provocam injustiça e empobrecimento social.
Liberdade, igualdade e fraternidade, a trilogia intocável do regime republicano, não traduz senão conceitos evangélicos e atitudes de uma cultura cristã milenar que ajudou a construção da Europa. Assim o afirma e o afirmará a história, mesmo que dela se rasguem folhas incómodas.


A trilogia contém valores, conceitos e atitudes, por vezes nem sempre claros e aceites, ao tempo, por gente da Igreja, há que dizê-lo, sempre que havia caído na tentação histórica de se inspirar e organizar segundo o poder civil de séculos passados. Dentro e fora da Igreja, cortaram-se raízes que a alimentam a sua vida. A força dos preconceitos que levaram, a pôr de parte a Bíblia, o esquecimento de parte importante da história, encurtaram o tempo, passando sobre a realidade cultural e histórica europeia uma esponja que pretendeu apagar séculos de uma cultura anterior à das Luzes, das quais também esta bebeu, mesmo quando a menosprezou e quis extinguir.
Assim se foram levantando altares a novos ídolos, colocados com festa e barulho no lugar de um Deus que se rejeitava, por desprezo ou por nunca se ter conhecido.
A República não entrou em Portugal por um acaso histórico. Havia no país situações de cansaço, desvios empobrecedores, políticas apodrecidas, apetências vorazes. A própria Igreja estava manietada, sob pretexto de apoio dado e de protecção recebida. Acontece sempre assim, quando o essencial se cala ante o efémero, e o poder se traduz por força e interesses, pessoais e de grupo.
A história regista na saga de 1910 a reacção do episcopado português, através de atitudes claras e documentos lúcidos e corajosos, assinados por todos os bispos do continente, que, ao tempo, eram doze. Vale a pena, porque o tempo o aconselha, reflectir sobre o que então foi expressão de lucidez, esperança e compromisso. É de desejar que os mais responsáveis da hierarquia e do laicado não passem, seja porque razão seja, ao lado de um momento importante da história pátria e da história da Igreja.
A linguagem dos bispos, em alguns casos, hoje seria outra, o que não é de estranhar, passados que são 100 anos. Ao longo destes, foi-se estruturando a Doutrina Social da Igreja, surgiu a Acção Católica, promoveu-se o laicado, celebrou-se um concilio ecuménico, multiplicaram-se os meios de comunicação, eclodiu a experiência democrática, uma nova cultura de respeito se foi impondo, o diálogo abriu caminho e muitas orientações foram dadas, exigidas pelas mudanças sociais e culturais e pela realidade de uma sociedade, política e religiosamente plural.
Encontramos, nas intervenções colectivas, um episcopado clarividente, actualizado, coeso e corajoso. As circunstâncias não favoreciam o diálogo e o poder político não o queria, nem o permitia. Tudo se orientava para calar os bispos e fazer perder às comunidades cristãs a sua força e consistência.
Nada silenciou o episcopado, pesem embora as múltiplas dificuldades. Tudo levou a uma maior união. Estavam em jogo coisas essenciais para as pessoas, a Igreja e sua missão, a verdade do Evangelho, o património eclesial, cultural e histórico.
Dois meses após a proclamação da República, dizem os bispos na Pastoral Colectiva: “A Igreja reconhece a independência e soberania da sociedade civil; não é adversa a nenhuma forma de governo desde que ela respeite a honestidade e a justiça. Reconhece, portanto, como um dever de consciência da parte dos católicos, a obediência aos poderes constituídos, salvos os direitos preferentes de Deus, Legislador Supremo. Em harmonia com estes princípios é que os fieis têm de orientar a sua vida pública”.
Mais tarde, em Maio de 1911, afirmam corajosamente: “A Religião católica deixou de ser a do Estado, não deixará, porém, de ser a do povo português”. Assim responderam à profecia de Afonso Costa de que a Igreja se extinguiria em poucas gerações. O tempo revelou a lucidez e o conhecimento da realidade religiosa do povo português.
“A viragem republicana abriu na distinção entre a Igreja e o Estado, um espaço novo de liberdade para a Igreja”. Assim disse Bento XVI. Foi o que aconteceu. O episcopado de 1910 assumiu-se como um corpo vivo. Não o esperavam os novos poderes. O campo ficou aberto à vivência da liberdade, que se conquistaria a seu tempo.
Tempos iguais, os de hoje, cuidados e vestidos com punhos de veludo. Uma cultura se destrói, o povo interroga-se, as pessoas contam cada vez menos. Não há atiradores que acertem no alvo.
Será que a história já não é mestra, nem sequer para a Igreja?

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