sábado, 31 de outubro de 2015

A morte: o último tabu

Crónica de Anselmo Borges no DN

«Sobre os dias 1 e 2 de Novembro, 
dias dos mortos e da pergunta essencial»

1- É bem possível que, para se perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e se trata a morte. Facto é que as nossas sociedades desenvolvidas, tecnocientíficas, do primado do ter sobre o ser, da eficácia, da vertigem do poder, do tempo digital e da aceleração, são as primeiras na história a fazer da morte tabu. Mais: assentam a sua realidade no tabu; para serem o que são, têm de fazer da morte tabu.


2-O que se passou? Nos princípios do século XX, o filósofo Max Scheler, reflectindo sobre o recalcamento da morte na sociedade europeia, foi encontrá-lo na modernidade, quando se deu uma estrutura diferente de experiência, centrada nos impulsos do trabalho, do domínio e do lucro. O homem moderno já não frui de Deus e a própria natureza já não é a terra natal acolhedora, que provoca admiração e espanto, mas tão-só o espaço da possibilidade de manifestação da subjectividade dominadora, como diz o soberano "penso, logo existo" de Descartes. Desde então, tudo fica sujeito ao cálculo, ao útil, ao funcional. Ora, se tudo é submetido ao útil e mecânico, orientado para o poder e ter sempre mais, já não há lugar para os outros valores. Num mundo matematizado e calculável, em que "é real o que é calculável", o homem moderno, centrado no activismo, pretendeu superar a angústia da morte através do domínio sem limites, de tal modo que o que fica é o progresso ilimitado, sem finalidade nem sentido humanos. O progresso, em que o progredir pelo progredir é o seu próprio sentido, transformou-se no substituto da vida eterna. Este homem, mediante os impulsos do trabalho, do lucro e do prazer sem limites, fica narcotizado quanto ao pensamento da morte. Na agitação constante, que tem em si mesma a sua finalidade e que se concentra no divertissement pascaliano, o homem moderno europeu julgou encontrar o remédio para a ideia da morte. Mas esse remédio é ilusório, pois, agora, a morte, em vez de aparecer como "o preenchimento necessário de um sentido vital", é poder e brutalidade sem sentido. O homem tradicional vivia face à morte com certa naturalidade e até familiaridade. O homem moderno, ao contrário, como vive como se não tivesse de morrer, como já não sabe "que tem de morrer a sua própria morte", quando esta aparece, só lhe pode aparecer como uma catástrofe. Vive no dia-a-dia, até que, subitamente, já não há mais um novo dia.

3- Este nosso universo tem 13 700 milhões de anos. Quase 14 000 milhões de anos! Tanto foi o tempo que demorou o processo até chegar a um existente que não só sabe mas sabe que sabe e sobretudo sabe que não sabe ilimitadamente e, por isso, pergunta. Um animal que é racional, falante, simbolizante, artista, moral... sepultante. Neste gigantesco processo da evolução, o aparecimento dos primeiros túmulos e dos rituais funerários é o sinal característico e decisivo da presença do ser humano no mundo. Pela primeira vez, está no tempo alguém que é consciência do tempo, portanto, da inevitabilidade de morrer e que simultaneamente recusa a aniquilação definitiva. É a consciência da morte que revela a emergência do radicalmente novo, a passagem do pré-humano ao humano, de "algo" a "alguém".

4- A morte é impensável em si mesma. Quando pensamos nela, é sempre no abismo do impensável que mergulhamos. Só por ilusão de linguagem é que dizemos, diante do cadáver do pai, da mãe, da mulher, do amigo: ele (ela) está aqui morto (morta). Na realidade, ele ou ela não está ali: o que falta é precisamente ele ou ela. E ninguém leva o pai ou a mãe, o filho, o amigo, à "última morada", para enterrá-los ou cremá-los. Como não tem sentido dizer que eles estão no cemitério e que vamos lá visitá-los. Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém. Então, porque é que a sua violação é uma profanação execranda? O que há verdadeiramente nos cemitérios? Naquele espaço sagrado, do silêncio recolhido, está, paradoxalmente, a fonte da linguagem enquanto espaço da abertura e da pergunta. O que há nos cemitérios é um infinito ponto de interrogação: "O que é o homem?" A morte e o seu pensamento abrem a condição humana ao desconhecido, à Transcendência inominável, que apela e que invocamos.

5- Com o tabu da morte apagaram-se as perguntas últimas e primeiras, metafísicas, e também a ética e a moral. Porque é a consciência do limite na morte que derruba as vaidades, que obriga a perguntar ilimitadamente e nos dá a distinção do justo e do injusto, do que verdadeiramente vale e do que não vale, da "existência autêntica" e da "existência inautêntica" (Heidegger). Percebe-se então que as nossas sociedades, da banalidade rasante, niilistas, tenham feito da morte tabu, o último tabu. Agora, vale tudo, porque nada vale. E é o espectáculo que se sabe e se vê!

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