sexta-feira, 6 de abril de 2018

O QUE É RESSUSCITAR?

Anselmo Borges 
Anselmo Borges
no DN


1Eu tinha dito às crianças para escreverem uma carta a Jesus. Apareceram várias, que foram lidas na missa do Domingo de Ramos. Jesus acabou por receber muitos beijinhos e desejos de Páscoa feliz. Houve uma particularmente encantadora, a da Margarida, 8 anos. Alguns parágrafos: "Nesta minha carta gostava de te dar uma ideia - espero que não fiques chateado. Se calhar, se falasses um bocadinho mais alto, as pessoas podiam ouvir-te um bocadinho melhor e seguir o teu caminho. Eu acho que assim haveria menos guerra e menos fome. (...) Eu ainda não percebi muito bem como se pode ressuscitar mas, como és infinitamente bom, sei que é possível."
2Apesar da idade, a Margarida já tem as suas perplexidades perante o mistério. E o Mistério, o Absoluto, tem duas faces: Deus e a morte. Quando nos confrontamos com a morte, é mesmo com o mistério que estamos. Ninguém sabe o que é morrer nem o que é estar morto, mesmo para o próprio morto. E tropeçamos em conflitos da linguagem e da realidade, quando, perante o cadáver do pai, da mãe, de uma pessoa amiga, dizemos: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo, a minha amiga, está aqui morto/morta... O que falta é precisamente o pai, a mãe, o amigo, a amiga... E que os levamos à sua última morada ou que os vamos visitar ao cemitério... Quem se atreveria a enterrar ou a cremar o pai ou a mãe, a pessoa querida? Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém, só "ossos e podridão", diz o Evangelho de modo cru. Então, o que há nos cemitérios para que a sua profanação seja um crime hediondo? Lá, o que há é a memória e uma infinita interrogação: o que é o Homem? A morte é o impensável - o filósofo Michel Foucault, nos seus últimos dias no hospital, terá sussurrado: "O pior é que não há nada a dizer" - que obriga a pensar.
Claro que é natural morrer. Sim, a vida acaba-se como uma vela..., mas já Ernst Bloch se insurgia: "O ser humano não é uma vela." Morremos como qualquer animal, mas a pessoa não é um animal qualquer: o que caracteriza o ser humano é mesmo a consciência de que é mortal, insurgindo-se ao mesmo tempo contra a morte. Lá está Pascal: a condição humana situa-se algures entre le néant et l"infini (o nada e o infinito) e daí nascem, sem fundo e sem fim, as perguntas últimas, metafísicas e religiosas: qual é o fundamento de tudo, o que sou e quem sou, donde venho, para onde vou, qual o sentido, o sentido último da minha existência e de tudo?
3Com a morte acaba tudo? Evidentemente, ficam os nossos átomos, ficam os filhos, os netos, uma obra, um livro..., mas já J.-P. Sartre se queixava do vazio que seria quando já ninguém o lesse na Biblioteca Nacional. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos estando mortos, e o núcleo da questão é a aniquilação do eu: o que será de mim?, como é que alguém se pode tornar ninguém? "Ai, que me roubam o meu eu", clamava Unamuno frente à morte. E Tolstoi também, pela boca de Ivan Ilitch moribundo: "Onde estarei, quando deixar de existir?" Hoje, a morte é tabu, disso pura e simplesmente não se fala. Mas isso não acontece porque a morte deixou de ser problema; pelo contrário, de tal modo é problema, o único problema para o qual uma sociedade poderosíssima nos meios, que vive na imediatidade e na fragmentação, do ter e sem ser, sem capacidade de resposta para a questão decisiva das finalidades humanas, do sentido, que a única solução é: disso não se fala. Mas Ernst Bloch, o ateu religioso, continuava a erguer a pergunta radical: "Para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?"
O ser humano é constitutivamente o ser da esperança, mas assim: por mais que realizemos dela, ficamos sempre aquém do que verdadeiramente esperamos, porque o que esperamos é "esse não sei quê" que é a vida eterna plena na Vida. Sem a alcançarmos, ficaríamos na situação da ponte que não atinge a outra margem... E foi tudo para nada?
O mundo é enigmático, ambivalente, claro-escuro, com bem e mal, beleza e horror, vida e morte, sentido e sem-sentido, mas, no meio da escuridão, com razões para a esperança, e é no próprio acto de confiar no Deus vivo, que tudo criou por amor, como Jesus revelou e testemunhou até à morte e morte de cruz, que se mostra a razoabilidade desse acto, porque então tudo se ilumina e adquire sentido. Aliás, se na morte tudo desembocasse no nada, não seria já tudo nada? Que distinção haveria na realidade entre verdade e falsidade, bem e mal, justiça e injustiça, dignidade e indignidade? Perante a alternativa do sentido último ou do sem-sentido, do mistério ou do absurdo, faz sentido optar pelo Mistério que salva. Como escreveu J. A. Pagola, acreditar em Jesus, o Vivente, "é resistir a aceitar que a nossa vida é só um pequeno parêntesis entre dois imensos vazios".
O que é ressuscitar? Eu acredito na vida eterna. Como é? Ninguém sabe. Enquanto ser do "entre o nada e o infinito", o ser humano tem de aprender a conviver com a incerteza - com a dúvida, mas optando -, porque, como viu bem o médico e filósofo Pedro Laín Entralgo, o que é certo (o saber científico) é da ordem do penúltimo; a ultimidadade, em relação com o decisivo - somos imortais ou com a morte acaba tudo, Deus existe ou não -, é saber de crença e de fé, com razões, mas incerto.
"Crer em Deus quer dizer ver que a vida tem um sentido" último, escreveu L. Wittgenstein. E se, precisamente na hora da morte, me fosse revelado que andei enganado? Também aqui concordo com o célebre teólogo Hans Küng, que também pergunta: "E se me tivesse enganado e na morte entrasse não na vida eterna de Deus, mas no nada? Se assim fosse, de qualquer modo teria vivido uma vida melhor e com mais sentido do que sem esta esperança."

padre e professor de Filosofia

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue