Anselmo Borges
Anselmo Borges |
no DN
1Eu tinha dito às crianças para escreverem uma carta a Jesus. Apareceram várias, que foram lidas na missa do Domingo de Ramos. Jesus acabou por receber muitos beijinhos e desejos de Páscoa feliz. Houve uma particularmente encantadora, a da Margarida, 8 anos. Alguns parágrafos: "Nesta minha carta gostava de te dar uma ideia - espero que não fiques chateado. Se calhar, se falasses um bocadinho mais alto, as pessoas podiam ouvir-te um bocadinho melhor e seguir o teu caminho. Eu acho que assim haveria menos guerra e menos fome. (...) Eu ainda não percebi muito bem como se pode ressuscitar mas, como és infinitamente bom, sei que é possível."
2Apesar da idade, a Margarida já tem as suas perplexidades perante o mistério. E o Mistério, o Absoluto, tem duas faces: Deus e a morte. Quando nos confrontamos com a morte, é mesmo com o mistério que estamos. Ninguém sabe o que é morrer nem o que é estar morto, mesmo para o próprio morto. E tropeçamos em conflitos da linguagem e da realidade, quando, perante o cadáver do pai, da mãe, de uma pessoa amiga, dizemos: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo, a minha amiga, está aqui morto/morta... O que falta é precisamente o pai, a mãe, o amigo, a amiga... E que os levamos à sua última morada ou que os vamos visitar ao cemitério... Quem se atreveria a enterrar ou a cremar o pai ou a mãe, a pessoa querida? Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém, só "ossos e podridão", diz o Evangelho de modo cru. Então, o que há nos cemitérios para que a sua profanação seja um crime hediondo? Lá, o que há é a memória e uma infinita interrogação: o que é o Homem? A morte é o impensável - o filósofo Michel Foucault, nos seus últimos dias no hospital, terá sussurrado: "O pior é que não há nada a dizer" - que obriga a pensar.
Claro que é natural morrer. Sim, a vida acaba-se como uma vela..., mas já Ernst Bloch se insurgia: "O ser humano não é uma vela." Morremos como qualquer animal, mas a pessoa não é um animal qualquer: o que caracteriza o ser humano é mesmo a consciência de que é mortal, insurgindo-se ao mesmo tempo contra a morte. Lá está Pascal: a condição humana situa-se algures entre le néant et l"infini (o nada e o infinito) e daí nascem, sem fundo e sem fim, as perguntas últimas, metafísicas e religiosas: qual é o fundamento de tudo, o que sou e quem sou, donde venho, para onde vou, qual o sentido, o sentido último da minha existência e de tudo?
3Com a morte acaba tudo? Evidentemente, ficam os nossos átomos, ficam os filhos, os netos, uma obra, um livro..., mas já J.-P. Sartre se queixava do vazio que seria quando já ninguém o lesse na Biblioteca Nacional. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos estando mortos, e o núcleo da questão é a aniquilação do eu: o que será de mim?, como é que alguém se pode tornar ninguém? "Ai, que me roubam o meu eu", clamava Unamuno frente à morte. E Tolstoi também, pela boca de Ivan Ilitch moribundo: "Onde estarei, quando deixar de existir?" Hoje, a morte é tabu, disso pura e simplesmente não se fala. Mas isso não acontece porque a morte deixou de ser problema; pelo contrário, de tal modo é problema, o único problema para o qual uma sociedade poderosíssima nos meios, que vive na imediatidade e na fragmentação, do ter e sem ser, sem capacidade de resposta para a questão decisiva das finalidades humanas, do sentido, que a única solução é: disso não se fala. Mas Ernst Bloch, o ateu religioso, continuava a erguer a pergunta radical: "Para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?"
O ser humano é constitutivamente o ser da esperança, mas assim: por mais que realizemos dela, ficamos sempre aquém do que verdadeiramente esperamos, porque o que esperamos é "esse não sei quê" que é a vida eterna plena na Vida. Sem a alcançarmos, ficaríamos na situação da ponte que não atinge a outra margem... E foi tudo para nada?
O mundo é enigmático, ambivalente, claro-escuro, com bem e mal, beleza e horror, vida e morte, sentido e sem-sentido, mas, no meio da escuridão, com razões para a esperança, e é no próprio acto de confiar no Deus vivo, que tudo criou por amor, como Jesus revelou e testemunhou até à morte e morte de cruz, que se mostra a razoabilidade desse acto, porque então tudo se ilumina e adquire sentido. Aliás, se na morte tudo desembocasse no nada, não seria já tudo nada? Que distinção haveria na realidade entre verdade e falsidade, bem e mal, justiça e injustiça, dignidade e indignidade? Perante a alternativa do sentido último ou do sem-sentido, do mistério ou do absurdo, faz sentido optar pelo Mistério que salva. Como escreveu J. A. Pagola, acreditar em Jesus, o Vivente, "é resistir a aceitar que a nossa vida é só um pequeno parêntesis entre dois imensos vazios".
O que é ressuscitar? Eu acredito na vida eterna. Como é? Ninguém sabe. Enquanto ser do "entre o nada e o infinito", o ser humano tem de aprender a conviver com a incerteza - com a dúvida, mas optando -, porque, como viu bem o médico e filósofo Pedro Laín Entralgo, o que é certo (o saber científico) é da ordem do penúltimo; a ultimidadade, em relação com o decisivo - somos imortais ou com a morte acaba tudo, Deus existe ou não -, é saber de crença e de fé, com razões, mas incerto.
"Crer em Deus quer dizer ver que a vida tem um sentido" último, escreveu L. Wittgenstein. E se, precisamente na hora da morte, me fosse revelado que andei enganado? Também aqui concordo com o célebre teólogo Hans Küng, que também pergunta: "E se me tivesse enganado e na morte entrasse não na vida eterna de Deus, mas no nada? Se assim fosse, de qualquer modo teria vivido uma vida melhor e com mais sentido do que sem esta esperança."
padre e professor de Filosofia
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.