Anselmo Borges
Anselmo Borges |
1 Jerusalém é uma cidade mítica no imaginário de milhões e milhões de pessoas, concretamente crentes das três religiões monoteístas.
O significado da cidade para os judeus está bem expresso no Salmo 137, versículos 5-6: "Se me esquecer de ti, Jerusalém, fique ressequida a minha mão direita! Pegue-se-me a língua ao céu da boca, se eu não me lembrar de ti, se não fizer de Jerusalém a minha suprema alegria!" Os cristãos sabem que foi em Jerusalém que Jesus enfrentou a religião oficial, exploradora do povo, ali foi condenado à morte e crucificado, ali fizeram os primeiros discípulos a experiência avassaladora de que a morte não teve nem tem a última palavra, pois Jesus está vivo para sempre em Deus. Para os muçulmanos, Jerusalém, onde se encontra a mesquita Al-Aqsa, é o terceiro lugar sagrado, depois de Meca e Medina.
Mas Jerusalém foi e é também lugar de confrontos constantes, de invasões permanentes ao longo da história, de contínua conflitualidade e, actualmente, um dos focos mais explosivos, com perigos e ameaças para a paz. A recente decisão do presidente Trump de passar para lá a Embaixada dos Estados Unidos, reconhecendo Jerusalém como capital de Israel, só contribuiu para incendiar os ânimos e agudizar as tensões.
2 Neste contexto, no passado dia 17, teve lugar no Cairo, por iniciativa das autoridades da universidade e mesquita Al-Azhar, uma conferência internacional sobre a Cidade Santa, Jerusalém, também com a presença, entre outras personalidades, do patriarca copta ortodoxo Teodoro II, o patriarca maronita Béchara Boutros Raï e o catholicos arménio Aram.
O Papa Francisco enviou uma carta ao Grande Imã de Al-Azhar. Nela, pode ler-se: "Elevo as minhas mais fervorosas orações para que os líderes das nações, as autoridades civis e religiosas, em toda a parte, se comprometam a evitar novas espirais de tensão e a mover todos os esforços para que a concórdia, a justiça e a segurança prevaleçam entre as populações desta Terra abençoada a que tanto quero."
E renova a posição que sempre tem mantido, aliás na linha da diplomacia tradicional do Vaticano quanto aos dois Estados e ao estatuto de Jerusalém. Como não lembrar aqui o encontro, em 2014, no Vaticano, para rezar juntos, a convite de Francisco, do presidente de Israel, Shimon Peres, e do Presidente da Palestina, Mahmoud Abbas? O abraço dos dois líderes, com o Papa por testemunha, ficou para a história. "Que Deus te abençoe!", disse Peres a Abbas, saudando-o. E rezaram.
Neste espírito, continua Francisco na citada carta ao Grande Imã: "A Santa Sé, pelo seu lado, não deixará de recordar com urgência a necessidade de que se reate o diálogo entre israelitas e palestinianos em ordem a uma solução negociada, encaminhada para a coexistência pacífica de dois Estados dentro das fronteiras entre eles acordadas e reconhecidas internacionalmente, no pleno respeito pela natureza peculiar de Jerusalém, cujo significado está para lá de qualquer consideração sobre questões territoriais. Só um estatuto especial, também garantido internacionalmente, poderá preservar a sua identidade, a vocação única de lugar de paz a que apelam os Lugares Santos e o seu valor universal, permitindo um futuro de reconciliação e esperança para toda a região. Esta é a única aspiração de quem se professa autenticamente crente e não se cansa de implorar com a oração um futuro de fraternidade para todos."
3 A quem se admire com este pedido de um "estatuto especial garantido internacionalmente" para Jerusalém, em ordem a preservar a paz, aconselho que relembre o acordo das Nações Unidas sobre esta temática, e a quem quiser aprofundar a questão, a leitura de duas obras monumentais do teólogo Hans Küng: O Judaísmo, O Islão.
Como é sabido, em 29 de Novembro de 1947, por maioria sólida e com o beneplácito dos Estados Unidos e da antiga União Soviética, as Nações Unidas aprovaram a divisão da Palestina em dois Estados: um Estado árabe e um Estado judaico, com fronteiras claras, a união económica entre os dois e a internacionalização de Jerusalém sob administração das Nações Unidas. Note-se que, apesar de a população árabe ser quase o dobro, os judeus, que então possuíam 10% do território, ficariam com 55% da Palestina.
O mundo árabe rejeitou a divisão e são conhecidas as guerras sucessivamente travadas. Mas, à distância, mesmo admitindo a injustiça da partilha e as suas consequências - é preciso pensar na fuga e na expulsão dos palestinianos -, considera-se que a recusa árabe foi "um erro fatal" (Hans Küng). Aliás, isso é reconhecido hoje também pelos palestinianos, pois acabaram por perder a criação de um Estado próprio soberano pelo qual lutam.
Como se tornou claro, a guerra não gera a paz, que só pode chegar mediante o diálogo, a diplomacia, cedências mútuas, com dois pressupostos fundamentais: o reconhecimento pelos Estados árabes e pelos palestinianos do Estado de Israel e o reconhecimento por parte de Israel de um Estado palestiniano viável, independente, soberano. E Jerusalém? Com um estatuto especial? Internacionalizada?
Como já aqui escrevi, na continuação de Küng, o conflito do Médio Oriente é sobretudo político. Mas não haverá paz enquanto os membros das três religiões monoteístas, que se reclamam de Abraão, se não tornarem activos, impedindo o fanatismo religioso. Com base nos seus Livros Sagrados - Bíblia hebraica, Novo Testamento, Alcorão -, judeus, cristãos e muçulmanos devem reconhecer--se mutuamente e lutar pela paz. Esta é a mensagem de Roma para Jerusalém.
Padre e Professor de Filosofia