quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Jesus: o poder e a autoridade

Cronica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias

Terminada a festa do Carnaval, os cristãos entram na Quaresma: 40 dias de mais profunda meditação, de mais intensa conversão, de amor mais vivo e perfeito, em ordem a poder celebrar com mais dignidade a Páscoa do Senhor enquanto passagem da escravidão à liberdade, da morte à vida.
Logo na quarta-feira de cinzas, é dita a cada um, a cada uma, ao mesmo tempo que lhe é colocada cinza na cabeça em sinal de humildade e exigência de reflexão, aquela palavra de Jesus no início da sua pregação: “Convertei-vos e acreditai no Evangelho”, a Boa Nova, notícia boa e felicitante.
De modo significativo, no primeiro Domingo da Quaresma, lê-se a passagem do Evangelho referente às tentações de Jesus. Ora, é importante que se diga que as três tentações estão todas referidas ao poder: poder económico, poder político, poder religioso. Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, foi para o deserto rezar, meditar, e tinha de decidir se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta segunda alternativa que seguiu: “Eu não vim para ser servido, mas para servir”, e servir até dar a vida.
Essencial: a única verdadeira tentação, segundo o Evangelho, é a do poder, no sentido da dominação. Evidentemente, em qualquer sociedade o poder é inevitável. Toda a questão consiste em saber como é que ele é exercido e com que finalidade. Quantos se lembram que Ministro, na sua etimologia, significa pura e simplesmente servente, aquele que serve? Primeiro-Ministro é o que está à frente no serviço. Jesus disse aos discípulos, portanto, também ao Papa, bispos, cardeais, padres: “Sabeis que os chefes das nações governam-nas como seus senhores. Não seja assim entre vós; pelo contrário, quem quiser fazer-se grande entre vós seja vosso servo.”
Jesus renunciou ao poder enquanto domínio, mas é referido frequentemente no Evangelho que ensinava com autoridade. A palavra autoridade vem do verbo latino augere, que significa aumentar. Ter autoridade tem, portanto, a ver com fazer crescer, aumentar no ser. Cá está: servir. O poder legitima-se enquanto serviço de fazer crescer na liberdade e na dignidade... Presidentes, ministros, bispos, jornalistas, pais, professores, padres, polícias... exercem legitimamente o poder enquanto autoridade, quando ele faz crescer...
Assim, não são apenas os súbditos que devem obedecer. A palavra obediência também tem a sua origem no latim: obaudire, que significa ouvir. Então, os que têm poder são os primeiros a ter de obedecer, isto é, a ter de ouvir aqueles que precisam que lhes seja feita justiça, ouvir a própria consciência, ouvir o apelo de todos aqueles que clamam por mais liberdade e dignidade... Não há superiores e inferiores. Há apenas homens e mulheres iguais em dignidade. E alguns estão constituídos em poder, que devem exercer como serviço a essa dignidade inviolável.
É curioso: quando se fala em tentações, o que vem normalmente à ideia é a tentação da carne, isto é, a tentação do sexo... Ora, sintomaticamente, Jesus também foi tentado, mas nenhuma das tentações se refere ao sexo; as tentações estão todas em conexão com o poder, com o domínio. Neste contexto, tenha-se presente o velho debate entre Freud e Adler: enquanto, segundo Freud, a pulsão humana fundamental está referida à libido e essencialmente ao prazer sexual, para Adler, essa pulsão tem a ver essencialmente com a auto-afirmação, com a vontade de poder. Ora, neste diferendo, é bem possível que seja Adler quem tem mais razão. Afinal, pensando bem, a própria sexualidade só constitui desvio quando alguém é utilizado como meio de prazer, quando a pessoa é instrumentalizada e coisificada.
Não; a grande tentação da Igreja, ao longo da sua história, foi e é o poder. Talvez isso explique até porque é que, no catálogo dos pecados, o sexo teve não só o predomínio, mas parecia, inclusivamente, deter a exclusividade do pecaminoso: no fundo, aninhava-se aí o medo de que o prazer subvertesse o poder... A tentação do poder nas Igrejas é tanto mais perigosa e deletéria quanto pretendam controlar, aprisionar o Sagrado e o Divino.
Escreveu, com razão, Miguel Baptista Pereira: “Perdido o sentido do Mistério, instala-se a ‘indoutrinação’ e a administração definitiva do Absoluto e consagra-se a intangibilidade dos seus burocratas, não fosse dilema humano o serviço do Mistério ou a vontade ilimitada de poder.”
A Inquisição, que pode sempre continuar sob formas subtis, deriva da pretensão de dominar o Mistério. Quem julga deter o saber todo sobre Deus faz-se fatalmente inquisidor, no dia em que tenha do seu lado o poder político. (Diga-se, entre parêntesis, que foi também isso que aconteceu com os regimes comunistas, por exemplo: pensavam deter a ciência da História e controlavam completamente o poder político). O pretenso saber total torna-se poder totalitário.
A novidade do Deus cristão é que, em Jesus Cristo, não vem em poder e majestade, mas como aquele que serve… Isto significa que, se Deus não dispõe de nós, muito menos nós podemos dispor de Deus. Deus é Mistério indisponível. Quem julga dispor de Deus, seja de que modo for, não esquece apenas que a fé termina no Mistério e não nas fórmulas do dogma. Corre sobretudo o risco de, com toda a desfaçatez, dispor dos homens e das mulheres... De facto, quem julga dispor de Deus, por que é que não há-de dispor dos homens e das mulheres?

Anselmo Borges no Diário de Notícias

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