sexta-feira, 3 de outubro de 2025

A “modernidade líquida” e os Dez Mandamentos

As Crónicas PÁRA E PENSA 
de Anselmo Borges estão de volta


Penso que ninguém pensante duvida que nos encontramos num tempo convulso de crises e guerras — actualmente, mais de 50 conflitos armados em curso —, num tempo obscuro e decisivo, imprevisível, da História. A crise é dramática, para não dizer trágica, de contornos não bem definidos, global. Ela é, evidentemente, ecológica, tecnológica — pense-se na IA, com todas as suas vantagens, é claro, mas também com os seus imensos perigos —, financeira, económica, política, social, religiosa, moral, de valores. Sim, decisivamente, de valores. De valores vinculantes. A própria democracia está em crise.
Zygmunt Bauman, um dos maiores sociólogos e pensadores do nosso tempo, caracterizou a situação como “modernidade líquida”. Os laços, íntimos e sociais, são frágeis. Há o receio de compromissos a longo termo. Tudo deve ficar em aberto, para não fechar possibilidades.
Baumann dava o exemplo do amor e da sua vivência contraditória, dolorosa. Por um lado, num mundo incerto e instável, “tem-se  mais necessidade do que nunca de um parceiro leal e dedicado, mas, por outro, fica-se aterrado com a ideia de compromisso (para já não falar de compromisso incondicional) com este tipo de lealdade e dedicação.” Há o receio de perder a liberdade e oportunidades. “E se o parceiro/a fosse o/a primeiro/a a decidir que está farto/a, de modo que a minha entrega acabasse no caixote do lixo? Isto leva então a tentar realizar o impossível: ter uma relação segura, mas permanecendo livre, para poder acabar com ela a cada instante.
Melhor: viver um amor verdadeiro, profundo, durável, mas revogável a pedido... Tenho o sentimento de que muitas das tragédias pessoais derivam desta contradição insolúvel”. No fundo, é a recusa do sacrifício. De facto, querer salvar o amor do turbilhão da ‘vida líquida’ é inevitavelmente custoso, como é custosa e difícil a vida moral. Entregar-se a outro ser humano no amor traz felicidade real e duradoura, mas “não se pode recusar o sacrifício de si e esperar ao mesmo tempo viver o ‘amor verdadeiro com que sonhamos”.
Na nossa sociedade, tende-se a substituir a noção de ‘estrutura’ pela de ‘rede’. É que, “ao contrário das ‘estruturas’ de outrora, cuja razão de ser era vincular com laços difíceis de desfazer, as redes servem tanto para ligar como para desligar”. Por isso, Baumann contrapunha ‘liquidez’ e ‘solidez’ das instituições. Afinal, “instituições sólidas, no sentido de duráveis e previsíveis, constrangem, mas ao mesmo tempo tornam possível a acção dos agentes”.
Pessoalmente, mais do que a imoralidade preocupa-me a amoralidade. Porque, quando tudo vale, nada vale, pois tudo é igual. Uma sociedade sem convicções e valores comuns partilhados não tem futuro, porque lhe falta horizonte e sentido. Por isso, fonte maior de mal-estar hoje está na falta de critérios de valor e de orientação.
Neste contexto, a revista alemã STERN publicou há alguns anos um dossier subordinado à pergunta: “Os Dez Mandamentos estão ultrapassados?” Significativamente, políticos como o então Ministro Federal das Finanças, W. Schäuble, realizadores como Wim Wenders, filósofos como Peter Sloterdijk, declararam que eles continuam vivos e actuais. De facto, quem negará actualidade a preceitos como: “Não farás imagens de Deus, mas respeitarás a dignidade de todos os seres humanos, sua imagem”, “Não matarás”, “Não cometerás adultério”, “Amarás os filhos e respeitarás os pais”, “Não roubarás”, “Não viverás à custa dos outros”, “Serás justo com todos“, “Protegerás a natureza”, “Assumirás as tuas responsabilidades”?
Referindo-se-lhes como um compêndio da sabedoria humana, acumulada ao longo de séculos, o grande escritor Thomas Mann disse que eles são “manifestação fundamental e rocha da decência humana”, “o ABC da conduta humana”.

Anselmo Borges, 
Padre e Professor

Sábado, 4 de Outubro de 2025

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