sábado, 29 de março de 2025

PÁRA E PENSA : Cuidado e Saúde

Crónica de Anselmo Borges

Na crónica anterior, reflectimos sobre o cuidado. Ora, a saúde está intrinsecamente vinculada ao cuidado. Viver é ser cuidado, é ter cuidado, é cuidar. Cuidar de nós, cuidar dos outros — a solidão mata —, cuidar da natureza, dos amigos — a vida sem amigos não presta, já observou Aristóteles —, cuidar da natureza, cuidar do Sagrado, da Transcendência, do sentido, Sentido último... Significativamente, o étimo de saúde é salus, salutis, que está na base também de salvação... E também dizemos que alguém está são, utilizando a mesma palavra para santo — por exemplo São José.
Vamos, pois, continuar a reflexão, retomando reflexões anteriores e chamando, desde já, atenção para que, quando se fala de saúde, devemos fazê-lo no sentido holístico (do grego, hólon: todo enquanto mais do que a soma das partes). No inglês, saúde diz-se health e santo diz-se holy, provindo as duas palavras de the whole — de novo o todo enquanto mais do que a soma das partes
A saúde tem, portanto, um carácter pluridimensional. No sentido autenticamente humano inclui vários níveis:

a) a saúde somática: o bom estado físico, portanto, um organismo capaz de desempenhar normalmente as suas funções;

b) a saúde psíquica: autonomia mental para enfrentar as dificuldades do meio e capacidade para estabelecer relações gratificantes interpessoais e com o ambiente;

c) a saúde moral: se não se cuida da honra, da dignidade, da justiça, dos valores éticos— não se deve ignorar que valor vem do latim: vale!, que era a palavra usada pelos romanos para a saudação: vale!, passa bem,! —, o que se poderá esperar senão a hecatombe?

d) a saúde sócio-política: se não se cultiva uma política autêntica do diálogo leal para o bem comum e não da pura conquista do poder e interesse próprio, se não se cuida do cumprimento integral dos direitos humanos, da educação, da justiça, do meio ambiente, da habitação, da alimentação, da harmonia social, da saúde pública, como salvaguardarão as pessoas a sua saúde e a saúde dos outros? No meio dos horrores indescritíveis das guerras e da fome, onde e como poderão encontrar a saúde?

e) a saúde ecológica: se o homem é solidário da biosfera em geral, a sua saúde dependerá também da saúde ambiental: ar puro e não-contaminado, água limpa, ambiente belo, sem poluição sonora;

f) a saúde espiritual e religiosa: a dimensão de transcendência do ser humano tem de ser salvaguardada, num duplo sentido: a interioridade e a transcendência são elementos constituintes da saúde plenamente humana, mas será necessário prevenir contra crenças e ideias neuróticas, que prejudicam o ser humano...

Neste contexto, Francisco J. Alarcos, depois de considerar todos estes níveis e dimensões, esboçou a seguinte tentativa de definição: “A saúde é a capacidade de realizar eficazmente as funções requeridas num dado meio, e como este meio não deixa de evoluir, a saúde é um processo de adaptação contínua a múltiplos micróbios, contaminações, tensões e problemas que o Homem diariamente tem de enfrentar. Mas o sujeito humano está também em constante evolução. A saúde é a capacidade de adaptar-se a um meio ambiente que muda; capacidade de crescer, de envelhecer, de sarar, por vezes com sofrimentos inevitáveis, e finalmente de esperar a morte em paz.”
A saúde comporta viver com sentido e, portanto, estar a salvo de tudo o que desumaniza e impede a realização adequada e plenamente humana. Por exemplo, saudar (de salutem dare) significa que estar são inclui “dar saúde” a quantos nos rodeiam, viver em solidariedade com todos, na alegria e na dor. No sentido íntegro da palavra, saúde é sinónimo de viver humana e harmoniosamente, com inclusão da esperança e da abertura à transcendência. Há hoje imensos estudos científicos que mostram a relação positiva entre uma prática sadia da religião e a saúde e até maior longevidade.
Mas acontece que ficamos doentes. Então socorremo-nos dos médicos. Também aqui a etimologia das palavras é iluminante. Significativamente, o radical med., donde deriva em latim mederi, com o sentido de ponderar, curar, cuidar de, restabelecer o equilíbrio, está na base de moderação, medicina e meditação. Aí está, pois, a saúde com o sentido holístico de harmonia, e o médico e o doente não se encontram como um técnico e uma máquina (o corpo) desarranjada, mas como dois seres humanos em diálogo, estabelecendo um pacto: o doente entrega-se à solicitude de outro ser humano, que, afectado por um pedido, escuta compassivamente e põe a sua arte ao serviço de uma existência ameaçada.
Isso acontece, em princípio, numa clínica, num hospital. Veja-se, mais uma vez, a etimologia. Clínica provém do grego klínein, inclinar-se. Hospital relaciona-se com hóspede. Um hospital deveria ser, portanto, sempre o lugar da hospedagem acolhedora e amiga. Mas é-o realmente? Veja-se a conexão entre as palavras latinas hospes e hostis (hóspede e inimigo — hostil —, respectivamente), como pode ver-se, por exemplo, hoje na palavra hostal, como se o hóspede, enquanto estranho, fosse ou pudesse tornar-se alguém hostil. Nos hospitais, hoje, para lá da efectividade, torna-se, pois, urgente recuperar a afectividade da hospedagem, para que o doente e o moribundo possam ser reconhecidos na sua dignidade e não como alguém estranho e hostil.
É bom saber do sentido holístico de saúde — sem esquecer o filósofo Immanuel Kant dizendo que O Céu, para aliviar as muitas dificuldades, nos deixou três coisas: “A esperança, dormir bem, rir com alegria” —, que implica também, no meio da agitação constante, capacidade para parar e não esquecer o melhor e poder pensar e meditar e ouvir música e contemplar a beleza de uma simples folha de erva, de um pôr-do-sol e do céu estrelado na sua quietude exaltante... Outra vez a etimologia: pensar vem do latim pensare, pesar razões, mas de pensare provém também o penso sanitário: pensar cura. Aí está, pois, a ameaça hoje das redes sociais e do “dedar” constante e absorto nos ecrãs e as nefastas consequências desse brutal consumo para o cérebro ao nível da saúde mental e da capacidade para ler, reflectir, estudar...
Repetindo, a saúde está intrinsecamente vinculada ao cuidado. Viver é ser cuidado, é ter cuidado, é cuidar... , em ordem à plena realização humana.


Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Sábado, 29 de Março de 2025

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