para este fim-de-semana
Comunidades cristãs vivas estão assentes em três núcleos ou pilares, que se interpenetram e exigem mutuamente.
Evidentemente, tudo se baseia na fé em Jesus Cristo e no seu Evangelho — Deus é bom, Pai e Mãe — como determinantes na vida e na morte e a celebração fraterna e bela dessa fé.
O outro núcleo é o da prática da justiça e do amor, o do combate lúcido e eficaz pela dignidade livre de todos os homens e mulheres, a começar pelos mais pobres, pelos humilhados e excluídos, no seguimento de Jesus, do que Ele fez e como fez. Não há religião verdadeira sem justiça e solidariedade. Mas isto implica que a justiça e o respeito pelos direitos humanos têm de começar pelo interior da própria Igreja. Na Igreja, Jesus queria mais do que uma democracia, pois o que Ele propunha era uma filadélfia, isto é, comunidades de amigos e irmãos (lê-se no Evangelho de S. João: “Já não vos chamo servos, mas amigos”).
O terceiro núcleo, que pode ser o primeiro, é o da pastoral da pergunta, da interrogação, e tem a ver com dar razões da dúvida e razões da fé e da esperança. Lá está a Primeira Carta de São Pedro, capítulo 3, versículo 15: “No íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça.” Isto significa que a fé não pode encerrar-se nas muralhas de um dogmatismo fixo e morto, tem de abrir-se ao diálogo e à razão crítica.
Esta abertura e este diálogo são tanto mais urgentes quanto os fundamentalismos (muçulmano, católico, protestante, das seitas) se tornam um desafio e perigo maiores. Não se pode esquecer que na religião, como se constata ao longo da História, há do melhor e do pior e, por vezes, em nome de Deus, o ridículo andou à solta e anunciaram-se e praticaram-se autênticas barbaridades, que tornaram a vida das pessoas menorizada, desgraçada, infeliz. Houve um número incontável de pessoas para quem teria sido preferível não terem encontrado a religião na sua vida.
A fé verdadeira não tem medo da razão autónoma, pois sabe que a razão, levada até aos limites das suas possibilidades, se acende na noite e também sabe que só um homem e mulher livres podem dizer sim ao Mistério. Para tentar balbuciar este Mistério, é necessário entrar em diálogo com todas as ciências, com todas as filosofias, com todas as religiões. Nestes tempos de penúria e de noite, como disseram Hölderlin e Heidegger, nestes tempos de niilismo, é tarefa decisiva da Igreja não deixar obturar a interrogação originária que nos faz homens e mulheres livres. É necessário manter acesa a pergunta radical e inconstruível, que é o sinal de que o Homem transcende o dado e de que não pode ser encerrado num positivismo crasso e obtuso.
E permita-se-me concretizar.
Uma das situações em que o ser humano é confrontado com o limite é o caso do perdão do algoz por parte das vítimas mortas, como se torna palpável na história contada por Simon Wiesenthal numa obra sobre Auschwitz. Como contou o teólogo Jürgen Moltmann, o judeu Wiesenthal era prisioneiro num campo de concentração e foi chamado ao leito de morte de um chefe nazi, que lhe queria confessar a ele, o judeu, que tinha participado nos fuzilamentos em massa de judeus na Ucrânia. Queria pedir-lhe perdão, para poder morrer em paz. Simon Wiesenthal disse-lhe que podia ouvir a confissão do assassino, mas que não podia perdoar-lhe, pois "nenhum vivo pode perdoar em nome dos mortos aos seus assassinos". Não pode fazê-lo, porque não tem o direito nem o poder para isso. E Wiesenthal ficou tão abalado com esta impossibilidade de perdoar que escreveu a muitos filósofos e teólogos europeus a contar-lhes a sua história, que publicou juntamente com as respostas num livro com o título: Die Sonnenblume (O girassol).
A razão, se não quiser sucumbir à parcialidade, isto é, se quiser ser verdadeiramente universal, não pode não ser "razão anamnética", isto é, tem de deixar-se iluminar pela memória das vítimas. E é imprescindível a memória para que as tragédias acontecidas não voltem a acontecer... Por outro lado, quem fará justiça às vítimas, também para que os algozes possam reconciliar-se e encontrar a paz?
O religioso autêntico, o místico, é aquele que caminha com Deus e para Deus, mas sem abandonar a noite. Ele não se distingue do crente e do descrente, que simultaneamente somos com dor e sofrimento, por já ter sido subtraído à noite na qual todos os mortais vivemos submersos. "Distingue-se por ter avançado na noite o suficiente para que a noite seja para ele 'amável como a alvorada', outra forma de luz", como escreveu o teólogo Juan Martín Velasco. Para muitos, em nenhum lugar da História esta experiência mística em que culmina a experiência de Deus foi tão radical como na cruz de Cristo, onde, segundo a fé cristã, "Deus se revela de forma definitiva e por isso insuperavelmente obscura". Aí, precisamente na dor insuportável da sua ausência, nessa noite de trevas, Deus está infinitamente presente, escutando aquela oração simultaneamente desesperada e confiante, que atravessa os tempos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste? Pai, perdoa-lhes, por que não sabem o que fazem".
Os cristãos ousam acreditar que Deus ressuscitou de entre os mortos esse Crucificado, que o foi por blasfémia e sublevação do povo oprimido político-religiosamente. NEle, Deus revelou-se solidário para sempre com todas as vítimas.
Anselmo Borges, no DN
Padre e professor de Filosofia