domingo, 2 de fevereiro de 2020

De incendiário a bombeiro

Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO

S. Tomás de Aquino sustentava que, de Deus, tanto mais saberemos 
quanto mais nos dermos conta de que não sabemos.

1. Comecei esta crónica a 28 do mês passado, dia da festa litúrgica de S. Tomás de Aquino. Este dominicano nasceu em 1224/1225 e morreu a 7 de Março de 1274. Era este, aliás, o dia tradicional da sua festa.
Foi condenado no terceiro aniversário da sua morte, pelo Bispo de Paris, E. Tempier, canonizado por João XXII em 1323 e declarado Doutor da Igreja a 28 de Janeiro de 1567 por Pio V.
Leão XIII, em 1892, atreveu-se a dizer que “se se encontram doutores em desacordo com S. Tomás, qualquer que seja o seu mérito, a hesitação não é permitida: sejam os primeiros sacrificados ao segundo”. O Concílio Vaticano II aconselhou que S. Tomás seja seguido nos Seminários e nas Universidades católicas. Paulo VI, comentando esse facto, disse: “é a primeira vez que um Concílio Ecuménico recomenda um teólogo e este é, precisamente, S. Tomás de Aquino”.

2. Umberto Eco fez uma tese sobre a estética de S. Tomás de Aquino e nunca mais esqueceu esse revolucionário que, “em quarenta anos, mudou toda a política cultural do mundo cristão”. Desconstruiu, com ternura e humor, o rol de sufocantes e vazios panegíricos eclesiásticos. Não considerou que a desgraça de frei Tomás de Aquino tenha sido a sua condenação por Tempier nem pelas condenações que se seguiram em Oxford até 1284. O que arruinou a sua carreira aconteceu em 1323, dois anos depois da morte de Dante, precisamente quando João XXII o canonizou. Fez dele “São” Tomás de Aquino! Aventura ingrata. É como receber o Prémio Nobel, entrar na Academia de França, ganhar um Óscar. Passa-se a ser como a Gioconda: um cliché. É o momento em que um grande incendiário é nomeado bombeiro [1].
No sétimo centenário da sua morte, perguntou U. Eco: o que faria este teólogo se vivesse hoje? Os seus comentários já não seriam sobre Aristóteles e “aperceber-se-ia que não podia nem devia elaborar um sistema definitivo, como uma arquitectura acabada, mas uma espécie de sistema móvel, uma Suma de folhas substituíveis, porque na sua enciclopédia das ciências entraria a noção de provisoriedade histórica. Não sei dizer se ainda seria cristão. Julgo que sim. Sei, de certeza, que participaria nas suas comemorações apenas para nos recordar que não se trata de decidir como usar ainda aquilo que ele pensou, mas de pensar outra coisa. Ou, no máximo, de aprender com ele como fazer para pensar com limpeza, como um homem do nosso tempo. Depois disso, não queria estar na sua pele” [2].
Tomás de Aquino separou-se do positivismo teológico que o precedeu, do uso de exclusivos argumentos da autoridade revelada, que apenas documentam a fé, mas não explicam como é que é verdade aquilo que a Igreja confessa ser verdade. A fé cristã não é um calmante, mas o excitante da inteligência e dos afectos. Não cultiva a ignorância em nome de Deus, cuja existência não é evidente. Não dispensa, mesmo no interior da fé, os caminhos para a afirmação da Sua existência, não procurando, porém, saber como Deus é – algo impossível – mas, sobretudo, como Deus não é [3]. Uma teologia anti idolátrica.
Trabalhou num contexto de grande efervescência cultural, no encontro do pensamento grego, árabe, judaico e latino. Na sua elaboração teológica, convergiam todos os saberes do seu tempo. Como diz K. Rahner, um dos seus discípulos do século XX, Tomás é um místico consciente de que Deus está para além de qualquer possibilidade de expressão, mas nunca cedeu à preguiça mental e à mediocridade intelectual; não dispensava o exercício da inteligência mesmo no acolhimento da revelação da esperança [4].
Sustentava que, de Deus, tanto mais saberemos quanto mais nos dermos conta de que não sabemos. Da sua experiência mística, no final da vida, brotou a confissão: tudo o que escrevi parece-me palha! No entanto, cantou numa belíssima poesia iluminista: atreve-te quanto puderes! Em suma: ousar e ser lúcido acerca dos limites da nossa ousadia.
Não é fácil de entender como conseguiu produzir uma obra filosófica, bíblica e teológica tão vasta em tão poucos anos. Do próprio punho não escreveu muito. Tinha má caligrafia, mas uma inteligência luminosa, uma memória extraordinária ao serviço de uma investigação constante. As oscilações de opinião eram pautadas pelas novas bibliotecas que frequentava, segundo o itinerário das suas viagens. Quem lhe valeu foram os secretários a quem ditava, por vezes, a 3 ao mesmo tempo.
Era muito sereno e silencioso, mas se o provocavam, não recusava a polémica e não se exprimia como um santinho. Bebeu em todas fontes de conhecimento que o seu mestre, o enciclopédico Alberto Magno, lhe proporcionou [5].

3. O caminho que abriu não é bem servido pela ignorância do seu legado – filosófico e teológico – nem pela sua obsessiva repetição. Ser discípulo é ser fiel ao espírito da sua criatividade, ter a noção da mudança cultural, introduzida pelo Renascimento. Assim aconteceu, nos séculos XV e XVI, perante a descoberta do Novo Mundo de muitas culturas.
No século XX, os repetidores de S. Tomás foram os seus coveiros, mas os que entraram no seu espírito, no meio de muita repressão do Santo Ofício, conseguiram obras e realizações de ousada criatividade. Estou a lembrar-me das fundações da Escola Bíblica de Jerusalém, do Instituto Dominicano de Estudos Orientais (Cairo), das Edições do Cerf, do Centro francês de pastoral litúrgica, do Centro Economia e Humanismo do P. Lebret, dos movimentos de renovação da arte sacra de A. Couturier e P. Regamey, da música litúrgica de A. Gouzes, das propostas e das práticas de teologia literária, como as de J.-P. Jossua e J. A. Mourão. Os teólogos que prepararam e marcaram o Vaticano II, de forma muito sofrida, como D. Chenu, Y. Congar, E. Schillebeeck, são mundialmente conhecidos e estudados.
Há muitos desafios novos no campo teológico. O Papa Francisco tem dirigido repetidas exortações à teologia que falta fazer no mundo actual. Não tem sido muito bem sucedido, mas enquanto há vida, há esperança de conversão [6].
Que a criatividade de Tomás de Aquino nos ajude e nos afaste dos repetidores do mesmo.

Frei Bento Domingues, no PÚBLICO

02. 02. 2020

[1] Cf. Um Santo inquietante (29.01.2006)
[2] Cf. Suma Teológica de folhas substituíveis (31.01.2010)
[3] I q.3, prol.
[4] Cf. Regressam as interrogações fundamentais (29.01.2012)
[5] Aconselho Mário A. Santiago de Carvalho, Ler São Tomás, Hoje? In Revista Filosófica de Coimbra, nº 7, Vol. 4 (1995), pp. 103-130. Está disponível na Internet. Ver também do mesmo autor, Tomás de Aquino. O ente e a essência, Afrontamento 2013 com boa selecção bibliográfica.
[6] Cf. Jesús Angel Barreda, O.P., “Teología” y “Teólogos” en el pensamiento del Papa Francisco, in Studium, Vol. LIX, Fasc.3 (2019), 355-396

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