sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Georgino Rocha - Fogo aceso, pronto a incendiar

DOMINGO XX



A declaração de Jesus não pode ser mais provocadora: “Eu vim trazer o fogo à terra e que quero Eu senão que ele se acenda? … Pensais que Eu vim estabelecer a paz na terra? Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão”. Lc 12, 49-53. Desde agora “a coisa” é outra: fogo que incendeie; divisão que gera paz.
Os discípulos, como nós ainda hoje, devem ter ficado chocados e perplexos. Ainda que Lucas – o autor da narrativa – tenha juntado, num só texto, várias sentenças, a mensagem surge tão radical que deixa intrigados a todos. E, naturalmente, nasce o espírito da busca do sentido mais profundo, o impulso da curiosidade mais abrangente do contexto, a força do desejo de verificar a coerência do proceder de Jesus.
“As palavras de Jesus sobre o fogo que veio trazer, afirma Manicardi, recordam à nossa cristandade cansada e às nossas velhas Igrejas que o cristianismo é vida e fogo, paixão e desejo, aventura e beleza”. E cita o pensamento de Atenágoras, patriarca de Constantinopla: “O cristianismo não é feito de proibições: é vida, fogo, criação, iluminação”. 
A caminhada para Jerusalém, cidade onde Jesus receberá o baptismo de que fala o nosso texto, continua. Aqui vai ocorrer o enfrentamento com os adversários – defensores da ordem estabelecida que, em muitos pontos fundamentais, contraria a proposta de Deus de que Jesus é portador e anunciador. Aqui vai manifestar-se, publicamente, quem está a favor ou é contra. Aqui ergue-se, humilhante, a cruz dolorosa que viria a ser transformada em Cruz gloriosa na manhã de Páscoa.
As imagens são muito fortes: Ateador de incêndios, perturbador de divisões que destroem a paz e lançam a guerra. Imagens contrárias ao que os seus contemporâneos esperavam e, mesmo, os discípulos desejavam. Imagem que, por incrível que pareça, encerram uma boa notícia, forte e interpelante, para as consciências adormecidas e alienadas.
O fogo incendiário é o do amor com uma energia tal que nada o detém. Nem a morte, como se verá no Calvário. Será tudo purificado, transformado e enobrecido: preconceitos, injustiças, corrupções, desonestidades, desvios sexistas, açambarcamentos económicos… e as sementes dignas da cultura humanizada – espelho original de Deus – hão-de germinar e florir num mundo novo, de respeito mútuo, de igual dignidade, de acesso aos bens indispensáveis a todos e a cada um.
A divisão/ruptura diz respeito a tudo o que está mal e pretende fazer manifestar a bondade e a beleza e, com a sua energia, irradiar e contagiar os laços familiares, as relações de vizinhança, os pactos de amizade desvirtuados, as regras económicas.
O fogo purificador e a divisão sanadora garantem o brotar da aurora de uma nova humanidade, onde florescerá a justiça e a paz para sempre. “Quem está próximo de mim está próximo do fogo, quem está longe de mim está longe do Reino”, sentença dita por Jesus transmitida por Orígenes.
O Papa Francisco, a 4 e 5 de Setembro próximo, visitará “terras de fogo” até há pouco tempo em guerras e guerrilhas com o respectivo cortejo de misérias, designadamente Moçambique. É lema desta viagem apostólica o tripé da “esperança, paz e reconciliação”, tripé que pretende robustecer o espírito novo dos acordos de paz recém-assinados. Acompanhemos o Papa e colaboremos, do modo que pudermos.

Georgino Rocha

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