Texto de Anselmo Borges, no DN
Andrés Torres Queiruga.
Enquanto o Papa, em Cuba, fazia apelo à liberdade, a Comissão para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Espanhola publicava uma Notificação - na prática, para a opinião pública, a condenação de mais um teólogo, Andrés Torres Queiruga. Como se a liberdade fosse para os outros e não devesse vigorar também no interior da Igreja.
Para muitos - também para mim -, A. Torres Queiruga é um dos maiores teólogos católicos vivos. No meu entendimento, foi e é o teólogo que de modo mais profundo e conseguido enfrentou o cristianismo com a modernidade e a modernidade com o cristianismo. Desgraçadamente, alguns teólogos e bispos espanhóis não pensam assim.
O que aí fica é tão-só, na medida em que o permite uma crónica de jornal, o que considero nuclear no pensamento de A. Torres Queiruga.
1. Tudo arranca da fé, com razões, no Deus que cria por amor. Deus não criou por causa dele, da sua maior honra e glória, mas apenas por causa das criaturas e da sua felicidade.
Tomada no seu sentido radical, a criação por amor, a partir do nada, implica, por um lado, a presença suma de Deus à sua criação, de tal modo que, se ele se retirasse, tudo voltava ao donde veio, isto é, ao nada, e, por outro, a autonomia das criaturas. Assim, a ciência, a política, a economia, a própria moral, não vão buscar a sua legitimação à religião, pois devem reger-se pelas suas próprias leis.
Segue-se que, sendo tudo milagre - o que existe podia pura e simplesmente não existir -, não há milagres no sentido da suspensão das leis que regem a natureza. De facto, os milagres supõem o que não é pensável: um deus "intervencionista", que está fora do mundo e que, de vez em quando e de forma arbitrária, vem dentro. Ora, Deus ao mesmo tempo que é infinitamente transcendente ao mundo é infinitamente presente e activo no mundo, e é, enquanto Anti-mal, sempre Força infinita criadora e potenciadora das possibilidades das criaturas.
2. Deste modo, torna-se inteligível o conceito fundamental das religiões, a revelação: como sabem os crentes que Deus falou?
Tudo o que é autenticamente religioso é resposta humana a perguntas profunda e radicalmente humanas. O que a especifica é o facto de descobrir nela a presença viva de Deus que quer manifestar-nos o seu amor e salvação. Há uma só realidade para crentes e não crentes. O que acontece é que o crente tem a convicção de que a realidade não se esgota na sua imediatidade empírica, e essa convicção não surge porque é crente, mas porque a própria realidade, para a sua compreensão adequada, se apresenta incluindo uma Presença divina, que não se vê em si mesma, mas está implicada no que se vê. Mediante certas características - a contingência radical, a morte e o protesto contra ela, a exigência de sentido último -, a própria realidade se mostra implicando essa Presença divina como seu fundamento e sentido último. Assim, cito, na estrutura íntima do processo religioso, "não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo comum".
3. A fé na ressurreição é central no cristianismo, mas ela não é a reanimação do cadáver nem pode ser constatável pelos historiadores. Ela é real, mas não é um facto da história empírica. Se o fosse, seria constatável empiricamente e não era precisa a fé nem seria ressurreição.
Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no "Deus que ressuscita os mortos" e que tinham acreditado em Jesus continuaram a crer nele, após a sua morte, uma morte que testemunhava o que foi o centro da sua mensagem por palavras e obras: que Deus é amor. Mais uma vez, reflectindo, aprofundaram a convicção de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, que é a vida plena e eterna. E disso deram testemunho até à morte.
Fica aqui a minha viva solidariedade de amigo e também filosófica e teológica com A. Torres Queiruga.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.