Reflexão de Georgino Rocha
A manhã da Páscoa contrasta profundamente com as trevas que se abatem sobre a terra aquando da morte do Nazareno. Com as trevas, vem o silêncio profundo. Com a aurora da manhã surgem a correria, a agitação, a comunicação e outros dinamismos de vida em efervescência. Protagonizam este processo Maria Madalena, o discípulo que Jesus amava e Pedro. A este primeiro círculo, outros cada vez mais amplos se sucedem. Todos assumem atitudes que se tornam paradigmas do itinerário da fé cristã contagiante: trazer ao coração a memória do sucedido, abrir-se à surpresa da ocorrência, ir em busca de sinais credíveis, examinar os vestígios, deixar-se iluminar pela Escritura, reconhecer a novidade do acontecimento, partilhar com outros a energia transformante e o sentido transcendente que comporta, fazer comunidade.
O Crucificado ressuscitou. Não à maneira de quem volta à vida temporal e transmigra para outros corpos à espera da purificação indispensável ou retoma funções vitais ocasionalmente suspensas. Não. Trata-se de uma realidade completamente diferente. Jesus morreu verdadeiramente. A sepultura é real. O túmulo tem dono e está guardado por sentinelas. Os amigos prestam-lhe as honras fúnebres condizentes. Choram por ele e fazem o luto preceituado.
Agora é visto em surpreendentes e sucessivas aparições. Dá provas fidedignas da vida nova e pujante que o habita e anima. Preenche plenamente o vazio existencial originado pelo seu desaparecimento. Congrega os fugitivos que se haviam dispersado. Entrega-lhes de novo os seus dons. Envia-os em missão. Responsabiliza-os por fazerem o alegre anuncio da sua ressurreição que confirma a seriedade do projecto “desenhado” em acções e explicitado em palavras durante a sua vida terrena.
O anúncio provoca reacções imediatas. Os guardas são convidados a adulterarem o que presumivelmente teriam visto e recebem promessas de pagamento. Pedro e o grupo apostólico é acusado de estar embebedado na manhã de Pentecostes, Pedro e João são presos e julgados por anunciarem que o povo havia matado “o Autor da vida, mas Deus ressuscitou-o dos mortos” (Act. 3, 15). E os exemplos continuam na história da Igreja iniciada no livro dos Actos dos Apóstolos e prolongada pelos tempos fora.
O anúncio de Jesus ressuscitado deixa quase na indiferença o homem de hoje. A festa da Páscoa é animada e, por vezes, torna-se exuberante nos símbolos populares: procissões na rua, roupas e cantares de “ver a Deus”, visitas domiciliárias, folares em família, ramos de flores, foguetes, campainhas. Estes sinais de festa estão a ser substituídos por passeios turísticos, mini-férias, jogos e feiras alucinantes, entretenimentos e convívios de vizinhança ou amizade. E a novidade do Crucificado que ressuscita tende a perder-se completamente, deixando num vazio atrofiador o sentido genuíno da vida humana pessoal e colectiva.
O Ressuscitado não pode desligar-se do Crucificado e da “causa” que propôs na Palestina e pela qual foi condenado. É esta mensagem selada com sangue de cruz que incomoda os instalados, inquieta os satisfeitos, questiona os detentores do poder económico ou outro, deixa a claro a indecência dos mecanismos perversos, sociais e religiosos, que segregam e marginalizam, abre horizontes de Infinito condizentes com as aspirações mais genuínas do coração humano, facilita a realização progressiva do “velho” sonho do homem ser como Deus.
Um crucificado sem ressurreição é um condenado sem razão no passado nem garantia de futuro. Um Crucificado que é ressuscitado constitui o penhor definitivo de que o caminho percorrido, a mensagem anunciada e a doação feita dignificam a vida e têm valor de eternidade. Só Ele marca, verdadeiramente, o ritmo da história injectando energias novas de transformação e abrindo para sempre as “portas” do futuro que germina no presente em gestos de doação generosa.