DE
BICICLETA ... ADMIRANDO A PAISAGEM – 31
BICICLETA
Caríssima/o:
Dia de
poesia... Então, procuremos acompanhar Herberto Hélder, “ o poeta pernalta
[que] dá à pata nos pedais... de pulmões às costas e bico no ar”...
«Lá vai a bicicleta do poeta em
direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os
sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos
pedais -
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.
O sol é branco, as flores legítimas, o
amor
confuso. A vida é para sempre
tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e desaparece
uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da
rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e
derrapa
no instante da graça.
De pulmões às costas, a vida é para
sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é
curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos
cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros
animais.
Se a noite cai agora sobre a rosa
passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a
própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta
pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
O poeta dá à pata como os outros
animais.
Se o sul é para trás e o norte é para o
lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da
morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros
animais,
dá à pata nos pedais para um verão
interior.»