Antropologia e medicina
Anselmo Borges
Já não vivendo em círculos fechados, acontece-me ser
convidado para intervir sobre o tema em epígrafe, no contexto de colóquios de e
para médicos.
De facto, o conceito de saúde e doença depende também da
ideia que se tem de Homem.
1. Assim, sublinharia, em primeiro lugar, a neotenia, para
reconhecer que o ser humano é um prematuro, nasce antes do tempo, sendo esta a
condição de possibilidade de se tornar Homem. Enquanto os outros animais vêm ao
mundo já feitos, o ser humano nasce por fazer e tem de se fazer. Por isso, é
sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura em história, com
encontros e desencontros e onde há lugar para a liberdade. O Homem é por
natureza cultural.
Sobre a possibilidade de aparecer um novo Wolfgang Amadeus
Mozart, escreveu Leon Eisenberg: para isso, "teríamos necessidade não
apenas do genoma de Wolfgang, mas também do útero da mãe de Mozart, das lições
de música do pai de Mozart, da irmã Nannert, da esposa Constanze, do estado da
música na Áustria do século XVIII, do apoio de Haydn, do patrocínio do
imperador Joseph II, etc., etc. Sem o seu genoma único, o resto não teria sido
suficiente. Mas também não podemos concluir que este genoma, aparecido noutro
mundo e noutra época histórica, resultaria igualmente num génio musical tão
criativo".
2. A concepção tradicional de Homem foi dualista, no sentido
de ele ser o composto de duas substâncias: corpo e alma, matéria e espírito.
Deste modo, responder-se-ia à pergunta: donde vem toda a actividade espiritual
e o pensamento e as ideias abstractas e a ética e a questão de Deus e da ânsia
de imortalidade.
Mas esta concepção não resiste a objecções fundamentais,
concretamente hoje, por causa da imagiologia cerebral. E de facto não nos vivemos
como uma alma que tem um corpo ou um corpo no qual habita uma alma. Vivemo-nos
antes como um ser unitário, ainda que em tensão.
De qualquer modo, nesta concepção, frente à doença,
ficaríamos com um técnico especialista (o médico), de um lado, e uma máquina
desarranjada, do outro (o doente).
3. Face às debilidades da concepção dualista, há a tentação
reducionista materialista, no quadro de um modelo mecanicista e biologista de
Homem.
Mas, aqui, quem reduz o Homem a impulsos eléctricos, a
física e química no cérebro, há-de confrontar-se com esta pergunta: como se
passa de mecanismos físicos e químicos da ordem da terceira pessoa para uma
vivência de si na primeira pessoa? Há, de facto, a vivência do eu e da
liberdade.
Como escreve Manuel João Quartilho, "a saúde física e a
saúde mental não estão separadas, do mesmo modo que o corpo e a mente não estão
separados. O corpo e a mente são as duas faces da mesma moeda". Há aqui um
enigma não completamente desvendável. Não se consegue passar directamente do conhecimento
do cérebro para uma explicação linear das experiências conscientes. Há uma
correlação entre fenómenos mentais e estrutura cerebral, mas não uma
identidade. Onde está o eu no cérebro? O filósofo Thomas Nagel caricaturou:
"... se um cientista louco te abrir a cabeça enquanto comes chocolate, e
lamber o teu cérebro, é seguro que não terá a mesma experiência que tu,
saboreando o chocolate."
Por isso, António Damásio conclui na sua última obra O Livro
da Consciência: "Nem as ideias discutidas neste livro nem as ideias
apresentadas por vários colegas que trabalham nesta área resolvem os mistérios
em torno do cérebro e da consciência de forma conclusiva."
4. Que concluir de tudo isto? No quadro de uma antropologia
emergentista, portanto, para lá do dualismo e do materialismo, que pensa o
Homem em processo e como realidade bio-psico-sócio-transcendente, para entender
uma pessoa (evidentemente, também a pessoa doente) e ajudar na cura, é preciso
usar os dois métodos: a explicação (biologia) e a compreensão (o que tem que
ver com as experiências do indivíduo, a sua história, as suas crenças, a sua
cultura).
No DN
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