Nova Orleães já não é. Uma cidade inteira, das mais simbólicas e ricas do mundo, desapareceu debaixo do desastre esmagador. De um dia para o outro, a terra do calor e ritmo, a combinação única de culturas, a personalidade incomparável deixou de ser. The Big Easy já não há.
Será certamente reconstruída, mas a nova Nova Orleães nunca será a velha Nova Orleães. Os novos sítios não substituirão os antigos recantos. O cheiro da tinta fresca cobrirá três séculos de História. Sobretudo, as vidas perdidas que deram vida à velha Nova Orleães nunca mais regressarão. A nova Nova Orleães será certamente grande e bela, terá certamente calor e ritmo, mas não será mais Nova Orleães. Nova Orleães já não é.
Perante o desastre, a cultura mediática entrega-se à tarefa mais ociosa e inútil denunciar responsáveis e ralhar com culpados. Faz assim em todos os desastres naturais. Nos fogos florestais portugueses, como no tsunami natalício do Índico ou no furacão de Nova Orleães. A culpa é dos ministros, dos interesses económicos, dos presidentes da câmara ou dos presidentes nacionais. O Governo tem culpa da seca, do envelhecimento, da desertificação. Perante a calamidade, discute-se política e exigem-se meios técnicos. Como se isso fosse a causa e a solução. Claro que houve erros e faltam recursos. Claro que se exigem reforços e novas medidas. Mas há algo que vai muito para lá disso tudo.
Esquecem que, por melhores que sejam os detectores de maremotos ou furacões, por mais fortes que sejam os diques ou os bombeiros, por mais que limpemos as matas ou compremos aviões, há uma dimensão irredutível e inelutável na nossa vulnerabilidade. O poder humano é minúsculo perante a catástrofe.
Plínio e todo o Império Romano ficaram chocados com a destruição de Pompeia em 24 de Agosto de 79. Voltaire e todo o Iluminismo ficaram chocados com a destruição de Lisboa em 1 de Novembro de 1755. Agora todos ficámos chocados com a destruição de Nova Orleães em 29 de Agosto de 2005. Vulcões, terramotos, furacões. Não melhorámos muito em dois mil anos. Quando a nação mais rica e poderosa de todos os tempos perde uma das suas grandes cidades em poucas horas, tem de haver algo muito para lá disto tudo.
O que há para lá disso é a suprema estupidez de perder uma cidade em poucas horas. Toda a beleza, toda a elevação e elegância, todo o fervilhar e animação, todo o calor e ritmo, toda a vida de Nova Orleães já não é. Esta é a suprema estupidez que fica para lá de todos os debates. Mas esta estupidez é a estupidez de toda a vida.
O que aconteceu a Nova Orleães em poucas horas é o que acontece a todas as cidades ao longo do tempo. A velha Roma já não é, tal como a velha Pompeia. A velha Lisboa já não é, a de ontem como a de 1754. Os que morrem pacificamente hoje nas suas camas não são, tal como Nova Orleães. A suprema estupidez é a perda, a mudança, o fim a que tudo está sujeito. Nada há mais certo que a morte. Subitamente ou devagar; e por vezes a agonia lenta é ainda mais estúpida que a súbita. O fim é a suprema estupidez de toda a vida.Mas o sentido de tudo advém da sua finalidade, tal como a razão da viagem é o destino. A perda e o sofrimento ganham significado pelo que vem depois. A horrível dor de parto justifica-se pelo nascimento. O cirurgião que amputa não é estúpido, porque salva o corpo todo. O semeador que enterra comida não é tonto, porque ela germina. A morte só é estúpida se nada vier depois. Vista apenas do lado de cá, a vida é estúpida porque morre. Vista a partir daquilo em que morte a transforma, a vida ganha sentido. Como a semente.
Todos os tempos, todas as culturas, sempre compreenderam que a vida, toda a vida, só tem sentido quando vista depois da morte. Quer o fim seja lento, quer súbito, como Nova Orleães, a vida só ganha sentido quando ultrapassa a morte. Esta é uma verdade universal, presente em todas as culturas. Todas, menos esta estúpida cultura mediática que vê desaparecer Nova Orleães sem perceber para onde ela foi.