Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Torna-se cada vez mais claro que a Igreja precisa de uma conversão a fundo. Com a tomada de consciência da tragédia da pedofilia, fala-se de um sismo e impõe-se uma reconstrução desde os fundamentos: Jesus e o Evangelho.
Neste contexto, permita-se-me que volte ao teólogo Hans Küng, católico convicto e pensador universal, que nos deixou em Abril de 2021 e que constitui certamente uma das fontes inspiradoras do Papa Francisco. Também ele pensava que é urgente cada uma, cada um, interrogar-se sobre a sua fé pessoal. No seu livro Was ich glaube (O que eu creio) deu testemunho, respondendo, de modo pessoal e profundo, às perguntas essenciais: em que posso acreditar?, em que posso confiar?, em que posso esperar?, como posso configurar a minha vida? De facto, a fé vive-se em Igreja, mas de modo pessoal. E só se pode transmitir aos outros, se realmente se mostra como Evangelho, notícia boa e felicitante para nós.
Foi assim que já em 2011 escreveu o livro Ist die Kirche noch zuretten? (A Igreja ainda tem salvação?), a que várias vezes aqui me referi. Foi por imperativo de consciência que o escreveu: "Na presente situação, o silêncio seria irresponsável".
De que sofre a Igreja? A Igreja católica, a maior, a mais poderosa, a mais internacional Igreja, essa grande comunidade de fé, está "realmente doente", "sofre do sistema romano de poder", que se caracteriza pelo monopólio da verdade, pelo juridicismo e clericalismo, pelo medo do sexo e da mulher, pela violência espiritual. E que propõe?
É preciso voltar a Jesus Cristo, ao que ele foi, é, quis e quer. De facto, em síntese, a Igreja é "a comunidade dos que se entregaram a Jesus Cristo e à sua causa e a testemunham com energia como esperança para o mundo. A Igreja torna-se crível, se disser a mensagem cristã não em primeiro lugar aos outros, mas a si mesma e, portanto, não pregar apenas, mas cumprir as exigências de Jesus. Toda a sua credibilidade depende da fidelidade a Jesus Cristo." Como procederia Jesus nas actuais situações, quando pensamos no modo como agiu? Seria contra o preservativo, os anticonceptivos, excluiria as mulheres, obrigaria ao celibato, proibiria a comunhão aos recasados? Que diria sobre as relações sexuais antes do casamento? Como procederia em relação ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso?
A Igreja não pode entender-se como um aparelho de poder ou uma empresa religiosa, mas como povo de Deus e comunidade do Espírito Santo nos diferentes lugares e no mundo.
O papado não tem que desaparecer, mas o Papa não pode ser visto como "um autocrata espiritual", antes como o bispo que tem o primado pastoral, vinculado colegialmente com os outros bispos.
A Igreja, ao mesmo tempo que tem de fortalecer as suas funções nucleares — oferecer aos homens e mulheres de hoje a mensagem cristã, de modo compreensível, sem arcaísmos nem dogmatismos escolásticos, e celebrar os sacramentos —, deve assumir as suas responsabilidades sociais, apresentando, sem partidarismos, à sociedade opções fundamentais, orientações para um futuro melhor.
Não se trata de acabar com a Cúria Romana, mas de reformá-la segundo o Evangelho. Aqui, pergunto: Não é o que quer Francisco com a reforma da Cúria na Praedicate Evangelium (Pregai o Evangelho)?
Mais: precisa-se de transparência nas finanças da Igreja; deve-se acabar com a Inquisição, não bastando reformá-la, e eliminar todas as formas de repressão; deve-se permitir o casamento dos padres e dos bispos, abrir às mulheres todos os cargos da Igreja, incluir a participação dos padres e dos outros fiéis na eleição dos bispos; não se pode continuar a vedar a Eucaristia a católicos e protestantes; é preciso promover a compreensão ecuménica, o diálogo inter-religioso e o trabalho em conjunto.
Na presente situação da Igreja, há várias opções: abandoná-la, converter-se a outra, não entrar nela. Outra opção: comprometer-se de modo activo na comunidade, em movimentos, na teologia, pela sua reforma. "Foi esta opção que escolhi para mim."
A sua visão da Igreja determina-se pelas características da radicalidade cristã: a reforma da Igreja não se funda na adaptação ao Zeitgeist (espírito do tempo), mas na mensagem originária cristã e da constância: não se baseia em oportunismos, mas atende aos impulsos fundamentais do Concílio Vaticano II.
Concretizando:
1. Não tem salvação uma Igreja voltada para o passado, mas aquela que "se concentra nas tarefas do presente", aberta ao futuro.
2. Não tem salvação uma Igreja fixada patriarcalmente em imagens estereotipadas da mulher, linguagem exclusivamente masculina, papéis sexuais pré-definidos. Mas sobreviverá uma Igreja de companheirismo, inclusiva e que "aceita mulheres em todos os cargos eclesiais".
3. Não tem salvação uma Igreja vencida pela arrogância institucional, exclusivismo confessional, negação da comunidade. Mas sobreviverá uma Igreja que seja "uma Igreja ecuménica aberta".
4. Não tem salvação uma Igreja eurocêntrica e que reclama que só ela tem a verdade. Mas sobreviverá uma Igreja "universal e tolerante, que respeita uma verdade sempre maior, que, portanto, procura aprender também com as outras religiões e deixa uma adequada autonomia às Igrejas nacionais, regionais e locais. E que, por isso, também é respeitada pelos homens e mulheres, cristãos e não cristãos". E concluía: "Não abandonei a esperança de que a Igreja sobreviverá".
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia