sábado, 2 de abril de 2022

A justificação da existência e o poder

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Finitos, queremos o Infinito. Mas, atenção!, só Deus é infinito e só Ele pode dar a plenitude, como escreveu Santo Agostinho: "Fizeste-nos para ti, ó Deus, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti."

1. Quando visitamos um casal amigo com filhos pequenos, é permanente a experiência de que os miúdos começam por exaltar-se, mostrando-nos os seus novos jogos, desenhos, etc. Com o tempo, os adultos vamos às nossas conversas, ficando as crianças esquecidas. Mas elas vão de novo chamar a atenção, com o telemóvel, uma fotografia... Depois, como voltamos às questões dos adultos, pode não restar aos miúdos outra alternativa que não seja bater com o pé no chão, amuar, fazer birras...
Mas não são só os miúdos ou os adolescentes. O que os adultos fazem para chamar a atenção... O que se investe, o que se gasta, para parecer e aparecer! Tudo para chamar a atenção... Afinal, é mesmo isto: não nos basta existir, estar aí pura e simplesmente. Queremos, temos fome ontológica de existir para alguém, para os outros. Não nos basta existir, sermos conhecidos; precisamos de ser reconhecidos pelos outros. As lutas, as pelejas que travamos para isso: para sermos reconhecidos!... Numa obra que constitui um dos cumes do pensamento humano, A Fenomenologia do Espírito, o filósofo Hegel, ao traçar o caminho das diferentes figuras da consciência até ao Espírito Absoluto, descreve a um dado momento, concretamente na dialéctica famosa do senhor e do escravo, a luta de vida e de morte entre as consciências, precisamente em ordem ao reconhecimento.
Também Sartre, nomeadamente em O Ser e o Nada, dedicou páginas célebres a esta questão do reconhecimento. Para que a nossa existência se legitimasse, este reconhecimento deveria ser incondicional. Daí, aquelas perguntas terríveis: será que ele, será que ela, seria capaz de mentir por mim?; será que, por mim, ela/ele seria capaz de matar? Mas, para Sartre, o reconhecimento é impossível, pois, concretamente mediante o olhar, ou eu coisifico o outro ou o outro me coisifica a mim. Apesar da nossa ânsia incontida de reconhecimento, não há possibilidade de sair desta luta. Por isso, "o inferno são os outros".
Foi com esta mesma problemática que se debateu São Paulo num dos monumentos culturais maiores da Humanidade: a Carta aos Romanos. De nada o ser humano precisa tanto como de justificar a existência, saber-se justificado. A nossa salvação consistiria no reconhecimento, na justificação incondicional da nossa existência pelo Absoluto, por Deus. Porque, seres humanos frágeis, falíveis, mortais, não podemos reconhecer-nos incondicionadamente, e, por conseguinte, salvar-nos. O Evangelho, a Boa Notícia do cristianismo, está precisamente em que Deus, em Cristo, nos justifica, isto é, nos acolhe incondicionadamente, de tal modo que a nossa vida vale a pena, pois vale para o próprio Deus. E, aqui, permita-se-me uma breve observação. Uma vez, em Maputo, numa palestra simples, tentei explicar isto da justificação. Soube mais tarde que um negro moçambicano ficou tão contente que fez pelo menos dez quilómetros a pé para ir dar a boa notícia a uma irmã de sangue: "Está lá, em Maputo, um tipo de Lisboa que esteve a explicar que nós todos valemos para Deus. Já viste? Valemos para Deus. Nós temos valor para Deus. Eu tinha de vir dizer-te isto."

2. O ser humano, pessoa e não coisa, não tem definição adequada. Mas, reflectindo sobre a sua constituição, penso que Pascal, um dos maiores matemáticos de sempre e também um dos maiores cristãos europeus, tem razão, quando disse: o Homem mora ali algures "entre o nada e o infinito". É isso. Aliás, a neotenia aponta também neste sentido. Nascemos prematuros, e, por isso, enquanto os outros animais nascem feitos - desde o primeiro dia fazem o que farão ao longo da vida -, o Homem, ah!, o tempo que demora a fazer um ser humano: tem de aprender quase tudo: a pôr-se em pé, a andar, a falar... Temos de receber por cultura e criando cultura o que a natureza nos não deu. Por isso, inovamos, criamos o novo, de tal modo que, se Platão, por exemplo, cá voltasse, encontraria os outros animais como os deixou, mas que dificuldades teria para se adaptar à nossa sociedade. O que isto mudou! Tendo vindo ao mundo por fazer, a nossa tarefa essencial, queiramos ou não, é fazermo-nos. O que andamos cá a fazer? Resposta: fazendo o que fazemos, andamos a fazer-nos..., e, no fim, o resultado será uma obra de arte ou uma vergonha...
Fazemo-nos uns aos outros e uns com os outros e ou colaboramos ou destruímo-nos. Entretanto, na luta pelo reconhecimento, não penso que sejamos piores do que os que nos precederam. Pelo contrário, até há mais consideração pela dignidade humana, pelos direitos humanos... O que se passa é que temos mais poder, incluindo, pela primeira vez na História, o poder de nos destruirmos como Humanidade. E, desgraçadamente, é tal a fome de reconhecimento, que se pode chegar à loucura de actos de terrorismo: "hão-de reconhecer-me; se não for a bem, será a mal".
Em busca de reconhecimento, queremos sempre mais poder, como constatou Thomas Hobbes no Leviatã: "Assinalo, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e inquieto desejo de poder e mais poder, que só acaba com a morte. A razão disso radica no facto de que não se pode garantir o poder a não ser procurando cada vez mais poder." Mas então, num mundo global e com armamento nuclear, o que pode esperar a Humanidade?
Finitos, queremos o Infinito. Mas, atenção!, só Deus é infinito e só Ele pode dar a plenitude, como escreveu Santo Agostinho: "Fizeste-nos para ti, ó Deus, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti."

Anselmo Borges no Diário de Notícias

Padre e professor de Filosofia.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue