Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Os baptizados formam um povo de profetas, reis e sacerdotes. A ruptura numa Igreja de irmãos deu-se com a ordenação sacerdotal, que originou duas classes: clero e leigos.
Todos os cristãos são sacerdotes: oferecem a sua vida a Deus e à sua causa, que é a causa dos seres humanos. Aqueles e aquelas que se reúnem convocados no baptismo pela pessoa de Jesus e o seu Reino formam a Igreja e são povo sacerdotal e sacramento de um mundo outro. Mas é necessário que haja homens e mulheres que dedicam a sua vida ao anúncio do Reino de Deus, conselheiros espirituais que despertam para a transcendência, animadores e coordenadores das comunidades...
Neste sentido, embora sem ordens sacras, continuará o ministério de padres, presbíteros, bispos, líderes das comunidades. Homens e mulheres, casados ou não, escolhidos pelas comunidades ou com a sua participação. Alguns temporariamente, outros de modo permanente. E para quê?
1. Para que a questão de Deus não morra entre os homens enquanto questão. Se a simples palavra "Deus" deixasse de existir, o Homem deixaria de ser Homem, como escreveu Karl Rahner: "A morte absoluta da palavra "Deus", uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu." Até filosoficamente, toda a pergunta pelo "sentido da acção humana", o perguntar pelo "sentido do processo do mundo na totalidade" exigem "um conceito de Deus". Com o eclipse de Deus, desaparece o sentido do mundo, que o Homem "em vão tenta reencontrar mediante uma acumulação de racionalidade". Mas já Georges Gusdorf tinha prevenido: "O caos, o absurdo, hoje, não propõem possibilidades abstractas; campeiam por todo o lado, não por insuficiência de racionalidade, mas por superabundância e excesso de lógica, de técnica, de intelectualidade parcelar, num universo em que a imensa acumulação de pormenores contraditórios oculta, ou mesmo destrói, a ordem humana. Deus morreu, a História enlouqueceu, o Homem morreu: tudo fórmulas desesperadas que exprimem a tomada de consciência, e o ressentimento, da ausência do sentido." O mundo parece encontrar-se perante um facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a Humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e "abdica da sua procura de sentido".
Mas o Homem enquanto for Homem não deixará de perguntar, e toda a pergunta, em última instância, desemboca na pergunta pelo Ser Absoluto e Fundamento Último. Como diz Ciorán, "tudo se pode sufocar no Homem excepto a necessidade do Absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, e inclusivamente ao desaparecimento da religião". No mesmo sentido, afirma L. Rougier: "A Igreja pode declinar, mas o sentimento religioso grávido de um impulso para o ideal, de uma sede do Absoluto, de uma necessidade de superar-se, que os teólogos chamam transcendência, subsistirá."
2. Líderes, para que a causa de Jesus, que é o Reino de Deus enquanto causa do Homem, não morra entre os homens. Líderes, portanto, exercendo, com o Povo de Deus, o tríplice múnus de Cristo, profeta, rei e sacerdote.
Profetas, anunciando o Deus Pai/Mãe que quer a salvação de todos os homens e mulheres. Não um deus do terror, mas o Deus da alegria e da vida; não um deus da exclusão, mas o Deus do perdão sem condições, que a todos acolhe, sobretudo aqueles e aquelas que são excluídos e marginalizados por motivos sociais, económicos, sexuais, religiosos; não um deus infantil, infantilizante e imoral, mas o Deus que é força de autonomização e dignificação. Profetas, que, parafraseando Kafka, falam sobre Deus, porque primeiro aprenderam a falar a Deus e com Deus. Profetas que sabem ler os sinais do mundo e dos tempos, que perguntam e escutam, e preparam anunciadores do Reino de Deus, implicados numa pastoral da interrogação, que tem a ver com dar razões da dúvida e razões da fé e da esperança. A fé não pode encerrar-se nas muralhas de um dogmatismo fixo, coisista e morto, mas tem de abrir-se ao diálogo e à razão crítica.
Líderes com um múnus régio. Jesus respondeu a Pilatos: sim, sou rei; nasci para dar testemunho da verdade. E já tinha dito: "Vim para servir, não para ser servido." Líderes, portanto, para animar comunidades cristãs fraternas, de serviço à dignidade infinita do ser humano. Desgraçadamente, a globalização está a ser sobretudo mundialização do mercado, no quadro ideológico do neoliberalismo, que cava cada vez mais fundo o fosso entre ricos e pobres. Os números não param de chegar, alarmantes e falando por si. Para quem tenta seguir Jesus Cristo, este estado de coisas é intolerável, bem como toda a exploração do trabalho, o racismo, os vários tipos de discriminação, qualquer violação dos direitos humanos. Trata-se, portanto, do combate lúcido e eficaz pela dignidade livre e pela liberdade com dignidade de todos os homens e mulheres, a começar pelos mais pobres, pelos humilhados e excluídos.
3. Não há religião verdadeira sem justiça e solidariedade. Mas isto implica que a justiça e o respeito pelos direitos humanos têm de começar pelo interior da própria Igreja. Na Igreja, Jesus até queria mais do que uma democracia, pois o que ele propunha era uma filadélfia, isto é, comunidades de irmãos e amigos (lê-se no Evangelho de S. João: "Já não vos chamo servos, mas amigos").
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.Escreve de acordo com a antiga ortografia