Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
1. O Papa Francisco acaba de fazer oito anos de pontificado. Não é no espaço desta crónica que me atreveria a fazer o balanço do que representaram e representam esses anos no interior da Igreja católica, no movimento ecuménico, no diálogo inter-religioso, nas iniciativas para desenvolver uma nova ética económica, social, política e ecológica.
Teve de enfrentar resistências organizadas à reforma da Cúria romana, estancar os escândalos da banca do Vaticano e aplicar medidas drásticas para erradicar o cancro da pedofilia. Retomou de forma criativa as grandes intuições do Concílio Vaticano II. Mediante gestos, palavras, acções e iniciativas exemplares, mostrou o que deve ser uma Igreja de saída para todas as periferias. É a partir dessas periferias que a Igreja encontra o seu caminho e a sua missão no Mundo contemporâneo.
Os documentos que publicou abrangem as questões fundamentais do nosso tempo. Não é por acaso que vários líderes mundiais desejam que o Papa Francisco participe na Cimeira de Glasgow sobre a crise climática, em Novembro, pela “autoridade moral” da sua voz em relação à matéria e também por estar “acima da política e fora dos conflitos nacionais”.
O Papa Francisco insistia na urgência em reconhecer, de forma clara, o papel das mulheres na Igreja. A discussão, que já vinha de trás, era o do acesso das mulheres aos ministérios ordenados, nomeadamente, ao diaconado e ao presbiterado. Encontrou um obstáculo difícil, num documento do Papa João Paulo II, que encerrava a questão para sempre e do qual já falámos nestas crónicas. A questão do acesso ao diaconado continua aberta e em discussão. O interessante é que este Papa, se não pode entrar pela porta, entra pela janela. Começou a nomear mulheres para algumas responsabilidades no Vaticano, muito a conta-gotas. Pareciam prémios de consolação ou um sinal de que a questão não estava esquecida.
2. De repente, publicou alguns documentos que começam a alterar o panorama. A 10 de Janeiro de 2021, publica a Carta Apostólica, Spiritus Domini, que modifica o Direito Canónico para autorizar o acesso das mulheres ao ministério instituído do Leitorado e do Acolitado. Na altura, parecia-me uma medida quase ridícula. Não supunha que estava inscrita num plano mais vasto.
Entretanto, a 7 de Março deste mesmo ano, foi anunciado um Sínodo dos bispos para dizer que não será só de bispos, mas de toda a Igreja, de homens e mulheres. É a pirâmide invertida. É importante notar que, já a 17 de Outubro de 2015, o Papa tinha essa preocupação sinodal: “Aquilo que o Senhor nos pede, de certo modo está já tudo contido na palavra Sínodo. Caminhar juntos – leigos, pastores, Bispo de Roma – é um conceito fácil de exprimir em palavras, mas não é assim fácil pô-lo em prática. O caminho sinodal é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio”.
Era difícil, será difícil, não é impossível. É andando que se faz caminho. E de 2015 até agora, andou muito!
Em Outubro próximo, o Papa dará início a um caminho sinodal de três anos e articulado em três fases (diocesana, continental, universal), feito de consultas e discernimento, que culminará com a assembleia de Outubro de 2023 em Roma. A lei é esta: “Um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito Santo.”
Durante vários anos, manifestei, nestas crónicas, o meu desejo de um novo Vaticano II. O Mundo não pára e a Igreja não pode ficar parada. Havia uma dificuldade de monta: não era com a nomeação de bispos alérgicos ao Vaticano II – como estava a acontecer – que se poderia reunir um concílio que respondesse aos novos desafios. Com a eleição do Papa Francisco, essa dificuldade poderia ser vencida. E foi.
O que está agora projectado com o novo sínodo, que inverte a pirâmide, é muito mais do que eu julgava possível. É uma bela notícia de Pentecostes e a afirmação do mistério da Santíssima Trindade que hoje celebramos: a realização da unidade na pluralidade.
O que diz respeito a todos deve ser tratado por todos. O que importa é construir a comunidade de todos, com o contributo de todos.
Para reforçar e concretizar o caminho sinodal, no dia 10 deste mês de Maio, o Papa publicou uma longa Carta Apostólica, Antiquum Ministerium, instituindo o Ministério Laical de Catequista. Quando se fala de catequese e de catequistas, pensa-se numa actividade paroquial para as crianças e adolescentes. Quem assim pensa ignora o papel fundamental dos catequistas na evangelização em vários continentes.
Na Carta Apostólica, realça que “receber um ministério laical como o de Catequista imprime uma acentuação maior ao empenho missionário típico de cada um dos baptizados que, no entanto, deve ser desempenhado de forma plenamente secular, sem cair em qualquer tentativa de clericalização”.
Realça que, “sem diminuir em nada a missão própria do Bispo – de ser o primeiro Catequista na sua diocese, juntamente com o presbitério que partilha com ele a mesma solicitude pastoral – nem a responsabilidade peculiar dos pais relativamente à formação cristã dos seus filhos, é necessário reconhecer a presença de leigos e leigas que, em virtude do seu Baptismo, se sentem chamados a colaborar no serviço da catequese. Esta presença torna-se ainda mais urgente nos nossos dias, devido à renovada consciência da evangelização no mundo contemporâneo e à imposição duma cultura globalizada, que requer um encontro autêntico com as jovens gerações, sem esquecer a exigência de metodologias e instrumentos criativos que tornem o anúncio do Evangelho coerente com a transformação missionária que a Igreja abraçou. Fidelidade ao passado e responsabilidade pelo presente são as condições indispensáveis para que a Igreja possa desempenhar a sua missão no mundo”.
3. Esta é a primeira vez que um Sínodo começa a partir da base. Isto pode significar que entrámos numa nova fase da vida da Igreja. Como realçou o cardeal Mario Grech, secretário do Sínodo dos Bispos, “este formato em três etapas foi escolhido porque o tempo estava maduro para uma participação mais ampla do povo de Deus num processo de tomada de decisão que afecta toda a Igreja e todos na Igreja”.
Esta é a grande fidelidade ao Concílio Vaticano II: todos participam do ofício profético de Cristo. Por essa razão, como foi possível perder tanto tempo para lembrar que aquilo que diz respeito a todos deve ser tratado por todos?
Esta decisão do Papa mostra que o seu carisma é fazer acontecer. Era também o carisma do Papa João XXIII: fez acontecer o Vaticano II. Depois, foram tomadas muitas decisões para que nada de novo acontecesse.
O Papa Francisco abriu todas as portas e janelas para que a Igreja toda esteja atenta e participe na construção de um Mundo de paz, que escute “o grito dos pobres e da terra” [1].
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Todos os documentos citados podem ser consultados em: Santa Sé, 7Margens, Agência Ecclesia, Pastoral da Cultura