Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO
1. É um prazer ler um texto político com a qualidade da Carta aberta, editada com o título: Convite aos cidadãos e líderes para um novo poder democrático europeu [1]. Espero que suscite um movimento de experiências, estudos e debates fecundos “para enfrentar os imensos desafios ecológicos, económicos, sociais, de saúde e de segurança que incumbem às nossas sociedades”. Desejo que este convite encontre um grande eco entre os cristãos, para que a Europa não ceda à tentação de levantar muralhas, mas de tecer pontes entre continentes. Sem a lucidez da ética da compaixão, a Europa perder-se-á na vontade de dominar e de excluir, tanto no interior de cada país, como na relação entre os membros da União e no acolhimento aos que fogem de guerras, da miséria e dos que procuram um futuro melhor para as suas famílias.
O grande teólogo protestante, W. Pannenberg, tocou, em 1994, num ponto que conserva, ainda hoje, toda a sua pertinência: a Europa não pode, sem mais nem menos, desembaraçar-se das suas origens cristãs, se pretende conservar o que é especificamente europeu na sua tradição cultural. Mas isso pressupõe que o Cristianismo não se apresente sectário, embora também não se possa dissolver na acomodação ao secularismo. Deve, antes, prosseguir no caminho de preservar, em si próprio, o melhor da herança da Antiguidade clássica – e assim a abertura à Razão –, mas também as verdadeiras conquistas da cultura moderna e contemporânea [2].
Pannenberg não podia prever o que aconteceu com a eleição do Papa Francisco e o que ele trouxe de novo, não apenas no campo do ecumenismo, do diálogo inter-religioso, mas no da intervenção na sociedade, fazendo das periferias o centro dos seus gestos, intervenções e documentos, incitando todas as pessoas, dentro ou fora de qualquer religião, a descobrir e agir segundo o que há de latente em todos os seres humanos: tornarmo-nos todos irmãos – fratelli tutti. Os mais velhos, como eu, depois da morte de João XXIII e do longo esquecimento do espírito das suas inovações, apenas podíamos sonhar com o novo clima em que estamos a viver.
O modo como ajudou os cristãos, pelo seu próprio exemplo e orientações, sabendo gerir e integrar as celebrações dos ciclos litúrgicos da Páscoa e do Natal – com enormes restrições de participação presencial –, permitiu sentir, de muitas formas, a proximidade afectuosa dos seus cuidados por todos.
2. Com a semana da Epifania, chegou ao fim o ciclo do Natal que constitui a condição de possibilidade de tudo o que diz respeito ao Cristianismo. Foram celebrações da ternura divina e humana centrada na família: família de Deus, família de Jesus, nascimento do mundo como família a realizar.
Apesar de já vermos alguma luz trémula ao fundo do túnel da pandemia, enfrentamos os desafios da desordem global. Os caminhos dos mais poderosos, e dos seus aprendizes, são caminhos que ensaiam novas formas de loucura política, servidas por novos e poderosos meios de comunicação.
É verdade que o próprio Cristianismo está confrontado com imensos desafios: indiferença, secularismo agressivo, perseguições aos cristãos em vários pontos do globo, novos movimentos fundamentalistas político-religiosos e outros que referi na crónica do Domingo passado, ao evocar o ensaio de T. Halík. A questão prática é esta: onde encontrar inspiração e energia para lhes fazer face?
3. Este é o Domingo dedicado a aprofundar essa questão. Segundo as narrativas dos quatro Evangelhos, Jesus de Nazaré levou muitos anos a encontrar o seu caminho. Quando pensava que o tinha encontrado como discípulo do austero João Baptista – foi por ele baptizado no rio Jordão –, teve uma experiência, durante a oração, que provocou uma viragem radical na sua vida: Deus não era o moralista que a pregação de João supunha e apresentava. Depois de sair do mergulho nas águas do Jordão, sentiu-se mergulhado no Espírito do mar de Deus donde lhe veio a íntima voz da pura graça do Amor: Tu és o meu filho muito amado; eu, hoje, te gerei. Então, o Espírito leva-o ao deserto para um longo retiro, durante o qual é assaltado por tentações diabólicas, as tentações das expectativas do messianismo político-religioso [3]. São as tentações da dominação económica, política e religiosa, que Jesus recusou sem contemplações.
S. Lucas acrescenta que não são tentações que se vençam de uma vez para sempre: Tendo acabado toda a tentação, o diabo o deixou, até outra ocasião mais oportuna.
Regressando a Nazaré, onde fora criado, entrou, em dia de sábado, na sinagoga e apresentou o seu programa, servindo-se de uma passagem do profeta Isaías: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano da graça do Senhor, um jubileu.
Depois, acontece algo de insólito que vai provocar a vontade de acabarem com Ele. Jesus tinha entregue o livro ao servente e, sentando-se, declarou que estava a cumprir-se o que acabava de ser lido. O público estava atento. Notou que fechara o livro como se mandasse na palavra sagrada, ao evitar o dia da vingança de Deus. Para o Nazareno, de Deus só pode vir amor. João dirá mesmo que Deus é amor de pura gratuidade. Em Deus não há ódio nem vingança e o que importa é nascer desse e para esse amor.
Jesus começou a realizar o seu programa contra a vontade de escribas e fariseus: o seu mundo era o dos excluídos, fosse qual fosse o motivo. Foi nos seus discípulos que também encontrou resistências porque eles tinham aderido ao seu chamamento, julgando que eram escolhidos para uma carreira económica, política e religiosa, o que levava a disputas entre eles para saberem quem seria mais privilegiado. Aí, Jesus não cede: quem quiser ser o primeiro ponha-se ao serviço de todos. No entanto, ainda depois da experiência da ressurreição, continuam a sonhar com uma carreira de poder. Jesus parece sentir-se impotente perante o renascer contínuo, na Igreja, do messianismo que tinha vencido e declara: só quando acolherdes o Espírito de Deus, o Espírito da minha vida, podereis entender o que é o programa da minha intervenção na história do mundo e da Igreja, a começar pelos seus líderes.
Isto significa que a cedência ao mundanismo e o renascimento no Espírito de Cristo é uma história a retomar em cada geração.
Não se admirem que tenha de voltar a esta questão.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. PÚBLICO, 04.01.2021
[2] Cf. Wohlfart Pannenberg, As Igrejas e o nascer da unidade da Europa, in Communio, n.º 4, Julho/Agosto 1994, pp. 339-351
[3] Cf. Mc 1, 9-13; Mt 3, 13 - 4,11; Lc 3,21 – 4, 13; Jo 1, 31-34