Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
Sagrada Família
Se o Natal cristão existe como a festa da proximidade, donde poderá vir a alegria com a afirmação pública e ostensiva da distância?
1. Comecei por não achar graça nenhuma à expressão que acabei por escolher para título desta crónica, embora de forma interrogativa. A história é simples. Recebi, como os dominicanos de todo o mundo, uma mensagem de Natal de um irmão filipino muito jovem, eleito Mestre Geral da Ordem dos Pregadores, em 2019, no Capítulo geral, realizado no Vietname, no qual também participaram dois delegados portugueses como eleitores.
O Mestre Geral chama-se Gerard Francisco Timoner III. Gostei muito da sua carta extremamente fraterna, orientada pela pergunta: Como pode haver alegria natalícia nesta época de pandemia?Passámos a Páscoa ansiosos a lutar contra o medo. Agora, celebramos o Natal ameaçados pelo mesmo vírus, com a obrigação de nos protegermos a nós e aos outros, mantendo o que ele chama uma distância caritativa. Mas, se o Natal cristão existe como a festa da proximidade, donde poderá vir a alegria com a afirmação pública e ostensiva da distância?
S. Paulo exorta-nos a contemplar a glória de Deus a rosto descoberto [1]. Ora, quando as celebrações eucarísticas são possíveis, a conta-gotas e com numerus clausus, as máscaras e as abluções tornaram-se parte da paramentaria litúrgica! As novas tecnologias passaram a ser também, em muitos casos, abençoadas alfaias do culto.
No entanto, o Natal deve continuar a ser a celebração do nascimento do Emmanuel, Deus-connosco em carne viva. Valha-nos Santo Agostinho para nos lembrar o clandestino que tão frequentemente esquecemos: Ele está mais próximo de nós do que nós de nós mesmos. Mas com que linguagem, com que gestos poderemos evocar essa intimíssima proximidade?
A expressão distância caritativa, que escolhi para título desta crónica, procura dar sentido à imposta distância social ou física. É uma expressão admirável. Para entender e sentir o seu alcance, talvez fosse preferível chamar-lhe distância amorosa. É o afecto, o amor recíproco, que exige esta distância física. Deve simbolizar uma intensificação da proximidade afectiva e as expressões criativas que a testemunhem. Doutro modo, a distância física acaba por fazer esquecer a presença real.
A bela palavra caridade (em latim, caritas e em grego, agapé) significa o amor de pura gratuidade, que é a própria realidade de Deus e do amor recíproco, quando a sua manifestação não encobre segundas intenções. Foi, no entanto, tão adulterada pela esmola humilhante da pessoa pobre que, no próprio hino da Primeira Carta aos Coríntios, usado frequentemente nas celebrações cristãs de casamento, é substituída pela palavra amor que intensifica e excede qualitativamente o amor erótico.
Nos últimos tempos, ainda antes da pandemia, a proximidade e o toque eram vistos, em certas circunstâncias, com suspeita: poderiam ser sinais de abuso ou assédio. Com a ameaça da covid-19, converteram-se em ameaças de contágio e de risco. A malícia contaminou o toque e fez com que a proximidade seja arriscada e imprudente; a caridade táctil tornou-se tabu. Paradoxalmente, manter uma distância segura, como protecção e prevenção da transmissão viral, transformou-se em sinal sincero da nossa “proximidade” e de uma preocupação genuína pela saúde e segurança dos outros.
O Mestre Geral da Ordem dos Pregadores, perante tantos condicionamentos, alegra-se ao verificar que, por toda a parte, nestes tempos difíceis, os seus irmãos e irmãs dominicanas multiplicaram a sua pregação e as suas obras de solidariedade que tocaram e alegraram a vida e o coração dos mais aflitos.
2. Neste Domingo, continuamos a proclamar que o Natal, com todas as suas limitações, traições, dolorosas separações, loucos sofrimentos, guerras e mortes, é a grande festa da família, mesmo quando é impossível manifestá-la. É o Domingo da Sagrada Família, porque todas as famílias, na sua grande diversidade, são realidades sagradas. Deus tornou-se ser humano numa família atribulada, como tantas que conhecemos em nossos dias.
Espanta, por isso, que Jesus tenha manifestado, ao longo da sua vida, um estranho contencioso com a sua própria família e com as famílias dos seus discípulos. Porquê?
Conta o Evangelho de S. Marcos que Jesus, depois dos primeiros tempos de actuação e de ter convocado um número simbólico de seguidores, voltou para casa. Mas, de novo, a multidão era tanta que nem se podiam alimentar. Quando os seus familiares observaram tudo isto, saíram para o deter, porque diziam: enlouqueceu [2].
S. João não esconde que os próprios irmãos de Jesus não acreditavam nele e até se divertiam a provocá-lo com piadas afrontosas sobre as suas intervenções públicas [3].
Voltemos, porém, a S. Marcos. Se os seus familiares julgavam que ele estava doido, os escribas, que tinham vindo de Jerusalém para estudar a sua duvidosa actividade terapêutica, sentenciaram: ele expulsa demónios porque está ao serviço do príncipe dos demónios, Beelzebu. Jesus procurou rebater esse absurdo, mas nada feito, pois continuaram: nele habita um espírito imundo.
Isto deixou a sua família ainda mais intrigada. Chegaram, então, a sua mãe e os seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram-no chamar. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: A tua mãe, os teus irmãos e as tuas irmãs estão lá fora e procuram-te. Ele perguntou: quem é minha mãe e meus irmãos? E, percorrendo com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe [4].
Tocamos, aqui, na maior revolução cristã sobre a família. Não é negada a sua composição de pais, filhos, irmãos e primos ou outras combinações, segundo a diversidade de culturas. Jesus nasceu nesse quadro, mas deu-se conta de que a família é tentada a fechar-se sobre si mesma e sobre os seus interesses egoístas. O resto não conta. Jesus, pelo gesto provocatório narrado por S. Marcos, não pretende destruir a família, mas que esta se torne o espaço e o tempo em que aprendemos o mundo todo como nossa família. Quando, agora, muita gente católica, bem situada, julga que o Papa Francisco, com a Fratelli Tutti, está a ser ingénuo e simplista, de facto, está apenas, no contexto contemporâneo, a ser fiel à revolução, inaugurada e traída, de Jesus Cristo. O mundo cristão não devia aceitar o mundo que temos construído à base de uma economia anti fraterna.
3. Estamos a chegar ao fim do ano 2020 e já surgem julgamentos políticos sobre ele e prognósticos sobre as dificuldades de 2021.
Quando, numa entrevista, perguntaram a Sophia de Mello Breyner Andresen o que gostaria de ver realizado, em Portugal neste novo século, respondeu: “Gostaria que se realizasse a justiça social, a diminuição das diferenças entre ricos e pobres. Mais justiça para os pobres e menos ambições para os ricos. O resto é-me indiferente.”
Não me ocorre nada de mais adequado para 2021.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] 2 Corintios 3,18
[2] Mc 3, 20-21
[3] Jo 7, 1-24
[4] Mc 3, 31-35