um escritor gafanhão
«O capitão Armando Vieira, do mesmo modo familiar com que o tinha recebido pela primeira vez logo após a chegada, fez entrar o amigo da juventude pela porta da cozinha, com as manifestações de alegria de quem acolhia em sua casa alguém que tivesse acabado de regressar, ileso, de uma batalha perdida
e a cozinha estava inundada de um odor forte, saído de algo que estava a cozinhar, que fez recordar ao tio Florêncio a caldeirada de bacalhau
não obstante ele pensou que não poderia adivinhar de forma tão simples e imediata que seria esse “o jantar gafanhão” que lhe tinha sido prometido, pois a caldeirada não poderia nunca ser considerada um prato gafanhão, nem tão-pouco apenas português
— Estás a lembrar-te de alguma coisa conhecida neste cheirinho que está aqui na cozinha, não estás, sócio?
mas eu aposto singelo contra dobrado em como não adivinhas o que a Adélia tem ali a cozinhar
— Guiado pelo cheiro, eu apostaria que se trata de caldeirada de bacalhau
mas ao mesmo tempo qualquer coisa me diz que perderia a aposta, porque este aroma que anda no ar não é exactamente igual ao da caldeirada
perderia… seguramente
porque depois de teres prometido um jantar gafanhão, seria falta de imaginação apresentares-me para comer uma banal caldeirada de bacalhau
embora seja coisa que não como há muitíssimo tempo só que ninguém poderá dizer que se trata de um prato gafanhão os bascos e os galegos também a fazem
— Deixa-te de divagações e vem dar uma espreitadela
— Oh, assim estragas a surpresa, Armando
mas ele aspirava o vapor que saía do tacho e comentava:
— Hum, este cheiro a salgado entra-me no nariz e trepa-me até à alma
vem cheirar, vem cheirar este perfume que nos lembra o mar e é como se fossem as mãos dos anjos a acariciar o que há de melhor dentro de nós
ah, e como formosa nos parece a vida saboreando estes petiscos
melhor do que isto só lagosta suada ou bacalhau á Freitas
o tio Florêncio aproximou-se dele e espreitou para dentro do tacho
aspirou também o cheiro da comida
— Então que tal?
— Não estou a ver o que possa ser
cheira a bacalhau… mas ao mesmo tempo há qualquer coisa de diferente neste cheiro
— São sames, sócio, são sames, que já não deves comer há muito tempo
— Sames?
caramba, há mais de trinta anos que não me lembrava sequer dessa estranha palavra, quanto mais comê-los
— Sim senhor, um guisadinho de sames de bacalhau, bem à gafanhoa
é ou não é?»
Excerto do capítulo oitavo
do romance “Ai, Amor”