Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
Numa experiência diferente do tempo, um tempo parado, vazio, parece, por um lado, que nada acontece de especial, por outro, na medida em que se está atento, percebe-se que a vida está aí para ser vivida e em interrogação constante. O vírus invisível e global isso fez: obrigou a parar e a pôr as perguntas essenciais. O que aí fica são algumas notas sobre este tempo novo.
1. São muitos os que se perguntam se vamos sair melhores, na convicção de que sim. Por mim, espero que sim, mas temo que, passada a catástrofe, tudo volte exactamente ao mesmo. Não esqueço aquelas palavras de Primo Levi que, ao sair de Auschwitz, constatou que “não saímos nem melhores nem mais sábios”. E viaja pelas redes sociais uma “graça”, talvez, infelizmente, verdadeira: “Vamos sair melhores?” – “Não. Porque isto é um vírus, não é um milagre”.
No entanto, é de um milagre que precisamos, ao sair deste pesadelo: sair melhores e mais sábios. Para isso, não se trata de mudar apenas isto ou aquilo, é urgente mudar o modo de pensar. Precisamos de uma conversão, como manda o Evangelho. Frequentemente, traduz-se essa conversão por “fazei penitência”, mas o que lá está é o verbo grego: metanoiête, que quer dizer: mudai o vosso modo de pensar, mudai a vossa mentalidade, começai a pensar de modo outro e a agir em consequência. Qual é o propósito da vida, o seu sentido mais profundo? É enriquecer, produzir cada vez mais, consumir sempre mais? Ou o bem-estar, o viver bem, num mundo que é de todos, na entreajuda para maior alegria e mais felicidade no sentido autêntico? Queremos continuar na religião de um progresso sem limites, que aliás não é possível num mundo que é finito, limitado? Não queremos viver melhor, com moderação, sem explorar a Mãe Terra nem os outros nem a nós, dentro de um modelo de progresso que assenta num montão crescente de vítimas? Talvez o nosso engano seja este: em vez de vivermos aqui, agora, vivermos, alienados, numa concepção de tempo, que é o tempo que a modernidade inventou: o passado é apenas o ultrapassado e o presente apenas a rampa de lançamento para um futuro de progresso sem fim. Mas, assim, neste modelo, quando vivemos e somos verdadeiramente?
2. E cá estão os dados dramáticos, na celebração do Dia da Terra, na passada Quarta-Feira, 22. Ai de nós, se, insaciáveis na satisfação dos nossos desejos não arrepiarmos caminho. Sirvo-me de alguns dados, recolhidos de um texto de Faustino Vilabrille: “Cuidar da Mãe Terra é cuidar dos seres humanos”, com números devastadores. Só alguns:
Gases com efeito estufa. Em 2018, o dióxido de carbono (CO2) aumentou uns 147%, o metano (CH4) uns 259%, o dióxido nitroso (N2O) uns 123%. O que quereríamos com milhões de carros, aviões, cruzeiros de luxo...?
Invadimos tudo com infinitas radiações electromagnéticas.
Os mares e os oceanos acabam por ser o depósito final do lixo do planeta: desde 1950 fabricámos mais de 8.000 milhões de toneladas de plástico. De todo o plástico que há nos oceanos, 268.940 toneladas são microplásticos que, ao ser ingeridos pelos peixes, passarão à nossa cadeia alimentar.
Destruímos milhões e milhões de hectares de florestas: só no ano 2000 foram queimados 350 milhões.
Resíduos. Milhões de toneladas de substâncias químicas tóxicas são espalhados dos modos mais diversos, como petróleo, produtos radioactivos, explosões atómicas, produtos químicos, pesticidas, resíduos urbanos, hospitalares, sanitários, fabris...
A Terra é a nossa Mãe, e ela pode viver sem nós, mas nós não podemos viver sem ela. Cuidar dela é cuidar de nós. Ela é a nossa casa comum e tomamos agora cada vez mais consciência de que formamos uma única humanidade. Precisamos de uma “ecologia integral”, como sublinha permanentemente o Papa Francisco, porque quem mais sofre com os maus tratos do planeta são os mais pobres. É preciso pensar nos 815 milhões de pessoas que passam fome (segundo a ONU, com a crise que acompanha a Covid-19, o número pode duplicar) enquanto outros (será que fazemos parte deles?) esbanjam 1.400.000 toneladas de comida ao ano e 1.500.000 toneladas de roupa. “É injusto exigir ao planeta produzir tanto para a seguir esbanjar, e tantas pessoas a passar fome, nudez e frio. A Mãe Terra está a pedir-nos um pouco de austeridade, solidariedade e amor para o bem de todos e de toda a Criação.” E os milhões de milhões de euros ou dólares em gastos militares? E chegamos ao absurdo de a um investigador de alta qualidade se pagar por ano uns 100.000 euros, mas a um desportista de elite, que dá pontapés numa bola, pagamos 30, 50 ou até 100 milhões ao ano. “A sério: não estamos um pouco loucos?”.
No Dia da Terra, lá esteve o Papa Francisco, que a História não esquecerá também por causa da encíclica histórica sobre a ecologia, Laudato Sí, a pedir que “se crie um movimento de base, de baixo para cima” para conseguir “a conversão ecológica”. “Criados à imagem e semelhança de Deus, estamos chamados a cuidar e a respeitar todas as suas criaturas, mas com amor especial e compaixão os nossos irmãos, sobretudo os mais débeis”. “A presente pandemia está a ensinar-nos que só se estivermos unidos e encarregando-nos uns dos outros poderemos superar os actuais desafios globais e cumprir a vontade de Deus, que quer que todos os seus filhos vivam em comunhão e prosperidade. Falhámos na protecção da Terra, nossa casa-jardim, e na protecção dos nossos irmãos. Pecámos contra a Terra, contra o nosso próximo e, em última análise, contra o Criador, Pai bom.”
3. Devia celebrar-se o 25 de Abril? Quem poderá pôr isso em causa? Mas as comemorações tinham de ser como foram, na Assembleia da República? Não. Foi incompreensível e escandaloso que, enquanto a Páscoa foi celebrada como foi, no confinamento, e o Papa a celebrar sozinho, e bem, os funerais, e bem, têm de ser celebrados como são, numa míngua arrepiante de possibilidades de despedida e de expressão da dor, enquanto os cidadãos continuam confinados, e bem, o Parlamento se mantivesse irredutível para as comemorações, incluindo convidados, que deveriam ter respondido que, entre uma ordem — ficar em casa — e um convite, deveriam ter obedecido à ordem. O escândalo é tanto maior quanto era possível uma comemoração condigna: com o discurso do Presidente da República e um concerto de música clássica (a nona Sinfonia de Beethoven, por exemplo) e canções de Abril, a transmitir pelas televisões e outros meios de comunicação social.
Dito o que aí fica dito, penso que os deputados e os políticos em geral fariam bem em reflectir sobre as razões do enorme afastamento e desinteresse da população e, concretamente, dos mais jovens, em relação a estas comemorações e à política em geral.
Na presente situação de catástrofe pandémica, sei que a prioridade é dar as mãos, colaborar lealmente, não estamos em tempos de luta na atribuição de erros, mas, por outro lado, a caminho de um lento desconfinamento gradual e com as devidas cautelas — Ângela Merkel, por exemplo, avisou na Quinta-Feira que a pandemia está ainda “no começo” —, não se pode de modo nenhum deixar de pensar criticamente. Tenho insistido constantemente nisso, e não me canso de fazê-lo: escola vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas tempo livre para homens e mulheres livres pensarem e governarem a polis, e tenho alertado para a ameaça de ter acabado esse ócio, porque tudo, incluindo a política, se tornou negócio, do latim nec/otium, negação do ócio, e a técnica (e os negócios têm sobretudo a ver com técnicas), não pensa, apenas calcula, como aprofundou o filósofo Martin Heidegger.
Neste contexto e face à crise económica, social e política já presente e que vai acentuar-se dramaticamente — será mesmo verdade que não vai haver medidas de austeridade? —, permito-me voltar a textos meus, que aqui publiquei muito antes da pandemia (“As maravilhas de Portugal”, Novembro de 2018, e “Sobre as eleições”, Setembro de 2019), nos quais não embarcava na “aparente euforia nacional”.
Algumas citações. Em 2018. “Quanto ao futuro, receio o abalo que acontecerá com a subida dos juros e se alguma crise internacional chegar. Há uma almofada suficientemente sólida de suporte? De qualquer forma, a dívida... E os portugueses não poupam, porque se criou a percepção de que tudo está sob controlo, e desculpam-se pensando também no que os Bancos cobram e as pessoas ainda se lembram de que vários Bancos faliram, e, até agora, não aconteceu nada, excepto que os contribuintes vão ter de continuar a pagar... O turismo continuará com a força do presente? Que investimentos se tem feito? O crescimento da economia tem derivado sobretudo da procura interna, e os portugueses até se endividam para consumos dispensáveis e viagens.”
Em 2019. “Dado que vivemos internamente mais de uma situação conjuntural favorável do que de investimentos sólidos para um desenvolvimento estrutural sustentável, receio que o país venha a confrontar-se com percalços inesperados. Tenho a sensação de que a aparente euforia tenha na sua fonte um manto de mentira e ilusão”. “Recentemente, a anterior Procuradora-Geral da República afirmou que o Estado está ‘capturado’ por redes de corrupção e compadrio. Joana Marques Vidal lamentou concretamente: Se nós pensarmos um pouco naquilo que são as redes de corrupção e de compadrio, nas áreas da contratação pública, que se espalham às vezes por vários organismos de vários ministérios, autarquias e serviços directos ou indirectos do Estado, infelizmente nós estamos sempre a verificar isso’. Que compromisso assumem os Partidos neste domínio gravíssimo?”. “Ponto decisivo: que os Partidos esclareçam o que pretendem fazer em relação à justiça, não só à justiça social — há muita miséria no país (acrescento agora: e vai aumentar assustadoramente) —, mas à justiça-poder judicial, órgão de soberania, independente. A justiça continua lenta e, por isso, pouco eficaz, e, se se ler e ouvir a opinião pública: que ela foi atingida pelo véu de alguma desconfiança. Lembro o Presidente da República referindo-se, no passado 10 de Junho, às ‘falências na justiça’: Portugal não pode ‘minimizar cansaço, corrupções, falências na justiça’. Neste contexto, a Banca. Uma catástrofe! Há anos que o Estado, isto é, os contribuintes, andam a pagar, a tapar buracos com milhares de milhões de euros, e não há consequências para as más administrações e os desvios?”
Mais. “O que vão fazer os Partidos para que haja transparência na política e com os políticos? Sinceramente, atendendo às suas responsabilidades, penso que os políticos são mal pagos e até pergunto: será essa uma das razões por que para as tarefas políticas a maior parte das vezes não vão os melhores e estamos cheios de incompetentes? Mas, por outro lado, verifico que imensa gente se bate por, como diz o povo, “ir para lá — para onde? Para o poder. Há muita sedução pelo poder, pois ele é ‘o maior afrodisíaco’ (Henry Kissinger dixit). Mas também haver muitos privilégios que moram para essas bandas. Que haja, portanto, transparência! Donde vêm tantas regalias e privilégios auto-concedidos? Já não há vergonha em Portugal? Leio que subvenções vitalícias para políticos custam milhões de euros, que extras quase duplicam o salário dos deputados (...). E a maior parte dos deputados não morrerão de cansaço, a trabalhar no e para o Parlamento, como denunciou numa entrevista recente Macário Correia: ‘Metade dos deputados no Parlamento não faz nada de concreto ou sequer útil, anda lá só a ocupar o tempo.’ E ficam sempre aberturas para contactos presentes e sobretudo futuros, numa ligação in-transparente de política e negócios...”.
“É essencial a racionalidade política em ordem ao bem comum, bem para lá dos interesses próprios e partidários. E a competência. É necessário pensar sempre mais longe e aproveitar a oportunidade para um consenso mínimo nacional, com duração suficiente, nos domínios da saúde, da educação, da justiça, da segurança social, da política internacional. Numa hierarquia de valores, que anda muitas vezes, desgraçadamente, transtornada. Para evitar o sobressalto permanente. E com que geoestratégia?”
Anselmo Borges no DN