domingo, 12 de janeiro de 2020

Conflito entre os EUA e o Irão?

Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO


«Apesar das dificuldades da mediação desejada, não é algo que esteja fora da melhor tradição vaticana.»


1. O sistema eleitoral dos EUA deu o poder a Donald Trump, mas não é esse sistema que lhe dá um poder absoluto. Entretanto, ele já manifestou que a sua vontade de manipulação e de arbitrariedade não tem limites. Vale tudo para atingir os seus perversos objectivos e sem qualquer respeito pela lei internacional. Depois do assassínio de Qassem Soleimani, ameaça bombardear o Património da Humanidade no Irão.
Há quem diga que D. Trump, em vez de neutralizar os objectivos e os métodos do terrorismo, tornou-se ele próprio um terrorista, com a agravante de dispor de recursos da maior potência mundial que se tornou responsável pela desordem incontrolável do Médio Oriente.
Parece que não existem apenas líderes burocratas e carismáticos. Existem também os asnáticos e os satânicos. Da ganância e da vontade de dominação do outro nascem todas as formas de diferenciar e potenciar a violência. As pulsões do desejo de provocar e dominar o outro deveriam ser dominadas pela cultura do reconhecimento mútuo. Fora deste horizonte, não se vê limite à escalada da violência. Dizem todos que não querem a guerra, mas fazem-na.
Da Grécia herdamos a beleza e a filosofia, de Roma herdamos o direito e do Cristianismo essencial recebemos a convicção de que o ser humano não tem preço. É valor incalculável. Como escreveu Teixeira de Pascoaes, “basta a miséria de um desgraçado, para que todos nós sejamos miseráveis”. Não esperemos que o próximo se torne bom para lhe fazer bem, como diz o Papa Francisco.

2. António Marujo refere-se, no 7Margens, à sugestão de John Allen Jr., no Crux do passado Domingo, sobre a possibilidade do Papa Francisco e do Vaticano assumirem o papel de mediadores entre os EUA e Irão. Em que se apoia John Allen para insistir nessa possibilidade?
Este jornalista norte-americano, sediado em Roma, recorda que os EUA e o Irão estão de relações diplomáticas cortadas desde 1980, no âmbito da crise dos reféns da embaixada norte-americana. A partir daí, as comunicações diplomáticas são feitas através da embaixada suíça em Teerão. Por outro lado, o Vaticano tem relações diplomáticas com o Irão desde 1954, 30 anos antes dos EUA; os líderes da revolução islâmica iraniana sempre quiseram ter bons contactos com o Vaticano para não ficarem um Estado-pária, como os EUA desejavam; o Irão é o segundo país com mais diplomatas credenciados junto do Vaticano e tem apreciado a orientação da política do Vaticano acerca da guerra na Síria, que não passa pela exigência de destituição do presidente Bashar al-Assad.
Aponta ainda outro elemento que poderia facilitar esta aproximação: em Abril de 2019, o Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral enviou, em nome do Papa, 100 mil euros para ajuda das dezenas de milhares de iranianos atingidos por uma vaga de fortes inundações (…).
Reproduzi parte da argumentação de John Allen, para que o leitor possa medir o seu peso e os seus limites. Observa que o Papa Francisco pode ter actualmente 
mais dificuldade em conseguir o diálogo com o Presidente dos EUA. Em diversas ocasiões, o Papa manifestou desagrado com várias das decisões políticas da actual administração dos EUA. Mas acrescenta: de qualquer modo, vários líderes católicos têm influência no governo de Donald Trump [1].
Uma mediação supõe ajudar a evolução das partes em conflito e o êxito nunca está garantido, mas aconteça o que acontecer, o Papa não desiste de encontrar caminhos para a paz: “A guerra traz apenas morte e destruição. Peço que todas as partes mantenham acesa a chama do diálogo e do autocontrolo, esconjurando a sombra da inimizade. Lembro ainda o compromisso que assumimos no início do ano: A paz como caminho de esperança – diálogo, reconciliação e conversão ecológica. Com a graça de Deus, poderemos colocá-lo em prática. Devemos acreditar que o outro tem, como nós, a mesma necessidade de paz.”

3. Apesar das dificuldades da mediação desejada, não é algo que esteja fora da melhor tradição vaticana. Não podemos esquecer o papel fundamental de João XXIII na chamada crise dos mísseis em Cuba, em 1962. Nunca como então, ao longo da guerra fria, foi tão próxima a sensação de se estar diante do abismo. Kennedy e Khrushchev​ acabaram por reconhecer que não podiam continuar pelo caminho que levaria à guerra termonuclear. O Papa, ao reconhecer que a sua intervenção tinha sido determinante na resolução do conflito, resolveu publicar uma encíclica que apontasse os caminhos para a instauração da paz mundial. Daí surgiu a Pacem in terris (11.04.1963), que teve um êxito retumbante.
Foi calorosamente recebida por U Thant, secretário-geral das Nações Unidas, pelo porta-voz do Conselho da Europa em Estrasburgo, que a considerou “uma das grandes Cartas da História”, pelo Prof. Bernal, presidente-delegado do Conselho Mundial da Paz, escrevendo ao Papa: “Os homens hão-de lembrar-se sempre com muita gratidão do vosso apelo que inspirará não só os que trabalham pela paz, mas também os milhões de seres humanos aos quais até ao presente tem faltado a confiança e a esperança para agir nesse sentido.”
O governo dos EUA formulou, pela primeira vez, um comentário a uma encíclica. O porta-voz do Departamento de Estado disse, em resumo: “Pacem in terris é uma encíclica histórica, de importância mundial.” Kennedy fez dela o seu guia: “Como católico sinto-me ufano e como americano recebi ensinamentos… Estamos em vias de aprender a falar a linguagem do progresso e da paz, por cima das barreiras das seitas e dos credos.”
Da Rússia soviética não faltaram declarações e comentários através da agência oficial Tass, do jornal Izvestia, órgão do governo, e do próprio Khrushchev​ que, a um diário italiano, disse: “Muitos registam hoje que o Papa João XXIII tem uma atitude realista sobre uma série de questões das mais escaldantes da nossa época e, em primeiro lugar, sobre o problema da paz e do desarmamento. Nós aplaudimos tal posição do Papa João XXIII em favor da paz.”
Após dias seguidos de ameaças, ao terminar este texto, veio a notícia de que o Irão retaliou a morte do comandante militar Qassem Soleimani com ataques a duas bases aéreas americanas no Iraque.
Os EUA e o Irão declaram que não querem a guerra, mas estão a promover uma guerra mundial aos bocados como o Papa Francisco tem avisado.
Hoje, celebramos o Baptismo de Jesus. É um mergulho no Espírito da paz a construir por todas as pessoas de boa vontade.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO 

[1] Cf. E se for o Vaticano a mediar o conflito crescente entre EUA e Irão?, 7Margens (06.01.2020)

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue