Crónica de Bento Domingues no PÚBLICO
1. O sistema eleitoral dos EUA deu o poder a Donald Trump, mas não é esse sistema que lhe dá um poder absoluto. Entretanto, ele já manifestou que a sua vontade de manipulação e de arbitrariedade não tem limites. Vale tudo para atingir os seus perversos objectivos e sem qualquer respeito pela lei internacional. Depois do assassínio de Qassem Soleimani, ameaça bombardear o Património da Humanidade no Irão.
Há quem diga que D. Trump, em vez de neutralizar os objectivos e os métodos do terrorismo, tornou-se ele próprio um terrorista, com a agravante de dispor de recursos da maior potência mundial que se tornou responsável pela desordem incontrolável do Médio Oriente.
Parece que não existem apenas líderes burocratas e carismáticos. Existem também os asnáticos e os satânicos. Da ganância e da vontade de dominação do outro nascem todas as formas de diferenciar e potenciar a violência. As pulsões do desejo de provocar e dominar o outro deveriam ser dominadas pela cultura do reconhecimento mútuo. Fora deste horizonte, não se vê limite à escalada da violência. Dizem todos que não querem a guerra, mas fazem-na.
Da Grécia herdamos a beleza e a filosofia, de Roma herdamos o direito e do Cristianismo essencial recebemos a convicção de que o ser humano não tem preço. É valor incalculável. Como escreveu Teixeira de Pascoaes, “basta a miséria de um desgraçado, para que todos nós sejamos miseráveis”. Não esperemos que o próximo se torne bom para lhe fazer bem, como diz o Papa Francisco.
2. António Marujo refere-se, no 7Margens, à sugestão de John Allen Jr., no Crux do passado Domingo, sobre a possibilidade do Papa Francisco e do Vaticano assumirem o papel de mediadores entre os EUA e Irão. Em que se apoia John Allen para insistir nessa possibilidade?
Este jornalista norte-americano, sediado em Roma, recorda que os EUA e o Irão estão de relações diplomáticas cortadas desde 1980, no âmbito da crise dos reféns da embaixada norte-americana. A partir daí, as comunicações diplomáticas são feitas através da embaixada suíça em Teerão. Por outro lado, o Vaticano tem relações diplomáticas com o Irão desde 1954, 30 anos antes dos EUA; os líderes da revolução islâmica iraniana sempre quiseram ter bons contactos com o Vaticano para não ficarem um Estado-pária, como os EUA desejavam; o Irão é o segundo país com mais diplomatas credenciados junto do Vaticano e tem apreciado a orientação da política do Vaticano acerca da guerra na Síria, que não passa pela exigência de destituição do presidente Bashar al-Assad.
Aponta ainda outro elemento que poderia facilitar esta aproximação: em Abril de 2019, o Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral enviou, em nome do Papa, 100 mil euros para ajuda das dezenas de milhares de iranianos atingidos por uma vaga de fortes inundações (…).
Reproduzi parte da argumentação de John Allen, para que o leitor possa medir o seu peso e os seus limites. Observa que o Papa Francisco pode ter actualmente
mais dificuldade em conseguir o diálogo com o Presidente dos EUA. Em diversas ocasiões, o Papa manifestou desagrado com várias das decisões políticas da actual administração dos EUA. Mas acrescenta: de qualquer modo, vários líderes católicos têm influência no governo de Donald Trump [1].
Uma mediação supõe ajudar a evolução das partes em conflito e o êxito nunca está garantido, mas aconteça o que acontecer, o Papa não desiste de encontrar caminhos para a paz: “A guerra traz apenas morte e destruição. Peço que todas as partes mantenham acesa a chama do diálogo e do autocontrolo, esconjurando a sombra da inimizade. Lembro ainda o compromisso que assumimos no início do ano: A paz como caminho de esperança – diálogo, reconciliação e conversão ecológica. Com a graça de Deus, poderemos colocá-lo em prática. Devemos acreditar que o outro tem, como nós, a mesma necessidade de paz.”
3. Apesar das dificuldades da mediação desejada, não é algo que esteja fora da melhor tradição vaticana. Não podemos esquecer o papel fundamental de João XXIII na chamada crise dos mísseis em Cuba, em 1962. Nunca como então, ao longo da guerra fria, foi tão próxima a sensação de se estar diante do abismo. Kennedy e Khrushchev acabaram por reconhecer que não podiam continuar pelo caminho que levaria à guerra termonuclear. O Papa, ao reconhecer que a sua intervenção tinha sido determinante na resolução do conflito, resolveu publicar uma encíclica que apontasse os caminhos para a instauração da paz mundial. Daí surgiu a Pacem in terris (11.04.1963), que teve um êxito retumbante.
Foi calorosamente recebida por U Thant, secretário-geral das Nações Unidas, pelo porta-voz do Conselho da Europa em Estrasburgo, que a considerou “uma das grandes Cartas da História”, pelo Prof. Bernal, presidente-delegado do Conselho Mundial da Paz, escrevendo ao Papa: “Os homens hão-de lembrar-se sempre com muita gratidão do vosso apelo que inspirará não só os que trabalham pela paz, mas também os milhões de seres humanos aos quais até ao presente tem faltado a confiança e a esperança para agir nesse sentido.”
O governo dos EUA formulou, pela primeira vez, um comentário a uma encíclica. O porta-voz do Departamento de Estado disse, em resumo: “Pacem in terris é uma encíclica histórica, de importância mundial.” Kennedy fez dela o seu guia: “Como católico sinto-me ufano e como americano recebi ensinamentos… Estamos em vias de aprender a falar a linguagem do progresso e da paz, por cima das barreiras das seitas e dos credos.”
Da Rússia soviética não faltaram declarações e comentários através da agência oficial Tass, do jornal Izvestia, órgão do governo, e do próprio Khrushchev que, a um diário italiano, disse: “Muitos registam hoje que o Papa João XXIII tem uma atitude realista sobre uma série de questões das mais escaldantes da nossa época e, em primeiro lugar, sobre o problema da paz e do desarmamento. Nós aplaudimos tal posição do Papa João XXIII em favor da paz.”
Após dias seguidos de ameaças, ao terminar este texto, veio a notícia de que o Irão retaliou a morte do comandante militar Qassem Soleimani com ataques a duas bases aéreas americanas no Iraque.
Os EUA e o Irão declaram que não querem a guerra, mas estão a promover uma guerra mundial aos bocados como o Papa Francisco tem avisado.
Hoje, celebramos o Baptismo de Jesus. É um mergulho no Espírito da paz a construir por todas as pessoas de boa vontade.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1] Cf. E se for o Vaticano a mediar o conflito crescente entre EUA e Irão?, 7Margens (06.01.2020)