domingo, 15 de dezembro de 2019

Que há de novo para este Natal?

Crónica de Bento Domingues
no PÚBLICO


"Este Natal recolhe frutos de uma caminhada, de poucos anos, mas que parecem séculos."

No solstício de Inverno – o momento preciso em que a duração do dia ultrapassa a duração da noite – os antigos romanos celebravam o Sol invictus, quer dizer, a vitória do deus Sol sobre a noite e sobre a morte. A Igreja de Roma resolveu designar essa data como a do nascimento de Jesus, o verdadeiro sol da vida: foi Ele que enfrentou a morte e a venceu! Como vimos na crónica do Domingo passado, o Natal tornou-se a cristianização inculturada de uma festa gentia.
Em regime de Cristandade, passou a ser uma celebração de cristãos para cristãos. Hoje, evoca uma bela festa de família, mesmo quando esta instituição está a passar por crises de vária ordem. No entanto, o centro da prática e da mensagem de Jesus consiste em procurar fazer família com quem não é da família biológica. Só nessa dimensão o Natal se pode tornar cristão.
Jesus, o Nazareno, teve uma intervenção na história humana, a partir de Israel com poucas saídas ao estrangeiro, embora muito significativas da sua mensagem universalista. Como diz o filósofo André Comte-Sponville, os melhores especialistas discutem, desde há muito tempo e ainda hoje, acerca da historicidade de Jesus, mas ele não aceita que o tratem como uma personagem mitológica: “gosto de pensar que um homem, de há dois mil anos, tenha manifestado – não só por palavras, mas pelos seus actos – o essencial, que não é nem a força nem a riqueza, mas o amor, a justiça e o cuidado com os mais frágeis.” [1]
Muito se tem escrito sobre Jesus como judeu marginal e como judeu central. Nem judeus nem muçulmanos o podem esquecer, seja qual for a história das relações entre cristãos, judeus e muçulmanos.
Alguns judeus têm estudado, com rigor e simpatia, a figura de Jesus [2]. É também uma figura muçulmana importante [3]. Como é evidente, no seio do cristianismo, continua não apenas a ser investigado e interpretado, mas sobretudo a manter com Ele uma relação viva e actual. Na crónica do Domingo passado, deixei algumas indicações bibliográficas. Alguns leitores pediram-me que apresentasse, também, livros de fácil acesso em Portugal [4].
Na figura de Jesus de Nazaré, surgiu uma relação com Deus e com os seres humanos, que não faz de Deus reserva privada de nenhum povo e não propõe um caminho humano que exclua qualquer pessoa, de qualquer etnia, de qualquer religião ou sem religião. O amor incondicional a todos e a recusa da exclusão, seja de quem for, é a sua marca. Fica para sempre o seu exemplo: evitar o mal que estraga a vida e dedicar-se às pessoas, sobretudo às mais abandonadas.
Este Jesus não escreveu nada. Os textos do Novo Testamento sem Ele seriam acerca de nada. É verdade que são textos de retrospectiva, elaborados alguns muito perto dos acontecimentos, como os de S. Paulo, e outros de segundas e terceiras gerações de cristãos. Quando dizemos Evangelho segundo S. Mateus, S. Lucas, S. Marcos e S. João, não significa que tenham sido estas personalidades que os escreveram. Foi importantíssimo que se tenha resistido a não eliminar as diferenças entre eles para fazer o evangelho único. Os cristãos têm, desde a origem, uma imagem multifacetada de Jesus Cristo. Hoje ainda, há preferências legítimas por alguns textos sem exclusão dos outros. É um Jesus Cristo plural no pluralismo que se deve viver na Igreja e na sociedade.

2. Bergoglio escolheu para o seu pontificado – arte de fazer pontes – a figura de S. Francisco de Assis, o amante da natureza, o aberto a todos, a começar pelos mais pobres, e a querer conversar com dirigentes muçulmanos. É a figura da paz, do perdão irrestrito e da reconciliação ecológica.
Esta escolha podia ser, apenas, um gesto simpático para anunciar um desígnio que as circunstâncias da vida fariam esquecer. Nada disso. Tornou-se cada vez mais evidente que essa escolha do nome era a própria marca da maneira de ser que gostava de incarnar.
Tinha pela frente questões muito vivas e agudas que levaram o Papa anterior a demitir-se. Antes de mais, era preciso levar a sério a reforma da cúria e da gestão do banco do Vaticano. Os escândalos multiplicaram-se. A pedofilia de padres, bispos e cardeais lançou, em muitos países, o descrédito em relação aos líderes da pastoral da Igreja. Esta era a exigência de uma reforma ad intra. A relação da Igreja tem a ver, essencialmente, com a sociedade em que está inserida, como o tinha afirmado o Vaticano II, na Gaudium et Spes, a Igreja no mundo contemporâneo, em mudanças vertiginosas. Nesta relação, ela não pode alimentar qualquer sonho de dominação. Pertence-lhe escolher os modos de servir e de levar as lideranças mundiais a pensar e a agir em termos de serviço.
Pela sua forma de actuar, o Papa Francisco mostrou uma relação nova da Igreja com a sociedade a partir dos mais abandonados e castigados por uma economia que mata. A Igreja só pode existir como um hospital de campanha, em saída para todo o género de periferias.
Criou, deste modo, um estilo que se tornou contagiante para alterar o diálogo inter-religioso que, muitas vezes, se alimenta de conversas inconsequentes, ou melhor dito, que não levam a nada. Pelo seu exemplo, os encontros com as outras Igrejas cristãs e com as outras confissões religiosas nunca deram a imagem de que estava, apenas, a cumprir exigências de boa diplomacia. Nesses contactos, ele mudou e os outros também.

3. Este Natal recolhe frutos de uma caminhada, de poucos anos, mas que parecem séculos. Dou apenas um exemplo: o Papa Francisco e o Grão Imame de Al Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, uma figura com grande influência no mundo muçulmano sunita, propuseram à ONU uma data para celebrar o Dia da Fraternidade Humana e participar na organização de um Encontro Mundial sobre a mesma. Isto segue a um grande trabalho de casa. Estas duas personalidades ao serviço da reconciliação entre povos e religiões tinham assinado, em Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos), a 4 de Fevereiro de 2019, o notável Documento sobre a Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a Convivência Comum. 
Jesus de Nazaré não nasceu apenas de um povo. Nasceu de toda a humanidade, como diz S. Lucas, e para que os povos não esqueçam que têm, todos, de construir uma grande família.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Cf. Le Monde des Religions (Novembre-Décembre 2016), p.55
[2] Daniel Boyarin, The Jewish Gospel. The Story of the Jewish Christ (existe tradução para francês com o título: Le Christ Juif. À la recherché des origins, Cerf, Paris, 2013
[3] Tarif Khalidi, Jesus Muçulmano. Máximas e Histórias da Literatura Islâmica, Tágide, Lisboa, 2002
[4] Anselmo Borges (Coord.), Quem foi Quem é Jesus Cristo?, Gradiva, 2012; Joseph Doré, Jesus explicado a todos, Paulinas, 2017

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