Crónica de Anselmo Borges no DN
«Afinal, a História não pode continuar a ser lida apenas a partir dos triunfadores e dos vencedores. Para ser autenticamente cristã, inclusiva, verdadeiramente universal, não pode ignorar nem esquecer o seu reverso: os vencidos, os perdedores, as vítimas.»
1. Já tinha acabado o congresso para o qual o convidara: "Deus no século XXI e o futuro do cristianismo". Antes de o levar ao aeroporto, tomámos o pequeno-almoço juntos, no Seminário da Boa Nova, num espaço que dá para uma bela paisagem a espraiar-se para o mar. E ele, no fim: "Hei-de voltar, para uma conversa ao pequeno-almoço fruindo este lugar belíssimo".
Foi em 2005, e já não cumprirá a promessa. O filósofo e teólogo alemão Johann Baptist Metz morreu no passado dia 2 de Dezembro, a caminho dos 92 anos.
2. Foi um dos maiores teólogos do século XX, pai da chamada "Nova Teologia Política". Discípulo de Karl Rahnner, que escreveu que "o cristão do futuro será místico, isto é, alguém que "experienciou" algo ou não será cristão, porque a espiritualidade do futuro já não se apoiará num ambiente religioso generalizado, anterior à experiência e à decisão da pessoa." Metz aprofundou, para incidir na "mística de olhos abertos", que é mística, mas abrindo os olhos para ver a realidade concreta: os que sofrem, os famintos, os injustiçados, os excluídos, os explorados de todas as maneiras, as crianças e as mulheres violadas, as vítimas todas deste mundo... Com as vítimas inocentes sempre presentes, aqueles e aquelas que foram vítimas inocentes, sem resposta dentro da História para o seu clamor. Há uma dívida da História para com elas; quem poderá pagá-la a não ser Deus?
Tudo começou pela sua própria experiência pessoal. Aos 16 anos, já no estertor do regime nazi, foi chamado às fileiras do exército alemão e, um dia, o comandante enviou-o com uma mensagem que devia entregar e, quando regressou, deparou com todos os companheiros mortos. Este acontecimento trágico mudou-lhe a vida, de tal modo que permanentemente dizia aos seus estudantes, concretamente em Münster: "Se o que aqui dizemos não tiver nada a ver com as nossas vidas e as nossas dores e as dores do mundo, não serve de nada. A Teologia tem que ser significativa." Não pode enredar-se em ritualismos secos, na mera burocracia legalista e na repetição de fórmulas de um tradicionalismo gasto, nem pode esgotar-se num espiritualismo abstracto nem cair numa redução ao foro privado.
O seu pensamento filosófico e teológico viveu acossado pela pergunta: "Como se pode falar de Deus depois de Auschwitz?" Afinal, a História não pode continuar a ser lida apenas a partir dos triunfadores e dos vencedores. Para ser autenticamente cristã, inclusiva, verdadeiramente universal, não pode ignorar nem esquecer o seu reverso: os vencidos, os perdedores, as vítimas.
A pessoa humana tem uma dimensão histórico-social, pública, política, praxística. Por isso, escreveu que a sua Teologia Política "é guiada pela intenção de tirar o seu carácter privado ao mundo conceptual teológico, à linguagem da pregação e da espiritualidade. Procura superar aquele excessivo matiz privado no discurso sobre Deus, a obstinada contraposição entre existência espiritual e liberdade de crítica social."
O Reino de Deus, núcleo da mensagem de Jesus, por palavras e por obras, que o levaram à cruz, constrói-se na História, sendo, portanto, necessário superar os dualismos que cindem a realidade em duas esferas simplesmente contrapostas: privado e público, pessoal e social, teoria e praxis, contemplação e acção, imanência e transcendência. A fé cristã é da pessoa, mas da pessoa nunca isolada; é contemplativa, mas ao mesmo transformadora, "é uma praxis dentro da História e da sociedade, que se concebe como esperança solidária no Deus de Jesus enquanto Deus de vivos e de mortos que chama a ser sujeito, pessoa, na sua presença". Por isso, olha para toda a violência e toda a injustiça, luta solidariamente por um mundo de dignidade para todos, sem esquecer Deus como "o Futuro Absoluto" (Karl Rahner), a quem apela como resposta para todas as vítimas e consumador do Reino que está a caminho. Vive no tempo, na imanência, mas sem esquecer a transcendência, a promessa de eternidade e "a reserva escatológica", que impede de divinizar o tempo e o que no tempo se constrói, os ídolos do mundo.
3. Enigma maior é o do tempo. O que é o tempo? Se soubéssemos o que é o tempo, saberíamos o que somos e quem somos. Quando se medita até ao fundo, deparamos com uma alternativa essencial, que Johann Baptist Metz chamou, dentro do background da situação da crise espiritual do nosso tempo, as duas mensagens contrapostas do tempo: por um lado, a mensagem do tempo com final e, por outro, a mensagem do tempo sem final, isto é, da eternidade do tempo, que aparece nos mitos do eterno retorno e que Nietzsche também retomou de modo dramático.
O Homem arcaico angustiava-se com o sentimento do termo próximo da sua vida e esta angústia do efémero terá paralisado o seu trabalho no mundo. Mas hoje, na opinião de Metz, há uma angústia mais radical, ainda que difusa. Certamente, há angústia perante as catástrofes, o terror, as guerras, a possibilidade da destruição universal, mas a angústia maior - a angústia em todas as angústias - é que não haja fim pura e simplesmente. É o tempo mítico-dionisíaco de Nietzsche: um tempo sem fim e sem finalidade, "inocente", para lá do bem e do mal, com experiências sem fim, sem começo nem termo e com o Homem inserido no ciclo da Natureza. O próprio Nietzsche que, exaltado, aclamou o eterno retorno do mesmo como o Sol do meio-dia também sentiu o seu horror, exclamando: "Asco! Asco! Asco!"
Em contrapartida, temos o tempo bíblico com a esperança escatológica do Deus que vem: no tempo, está em processo de amadurecimento o que é mais do que o tempo, de tal modo que o tempo tem um final e esse final do tempo será simultaneamente a sua consumação. No horizonte do tempo a prazo, o tempo tem um final, que não é a aniquilação mas a plenitude. O tempo com final é o tempo da humanização, do despertar da consciência, do saber que o Homem existe como sujeito incondicionalmente responsável e, assim, culpável concretamente pela "falta de respeito para com a dor alheia", como sujeito capaz de verdade e de obediência à "autoridade insubornável das vítimas", na qual se manifesta a autoridade do Deus que salva. O Deus que, como escreveu São Paulo na Carta aos Romanos, 3, 17, "cria os que não existiam e ressuscita os que morreram", dando-lhes a plenitude da vida.
Anselmo Borges no Diário de Notícias