domingo, 15 de dezembro de 2019

Johnn Baptist Metz: o clamor das vítimas

Crónica de Anselmo Borges no DN

«Afinal, a História não pode continuar a ser lida apenas a partir dos triunfadores e dos vencedores. Para ser autenticamente cristã, inclusiva, verdadeiramente universal, não pode ignorar nem esquecer o seu reverso: os vencidos, os perdedores, as vítimas.»

1. Já tinha acabado o congresso para o qual o convidara: "Deus no século XXI e o futuro do cristianismo". Antes de o levar ao aeroporto, tomámos o pequeno-almoço juntos, no Seminário da Boa Nova, num espaço que dá para uma bela paisagem a espraiar-se para o mar. E ele, no fim: "Hei-de voltar, para uma conversa ao pequeno-almoço fruindo este lugar belíssimo".
Foi em 2005, e já não cumprirá a promessa. O filósofo e teólogo alemão Johann Baptist Metz morreu no passado dia 2 de Dezembro, a caminho dos 92 anos.

2. Foi um dos maiores teólogos do século XX, pai da chamada "Nova Teologia Política". Discípulo de Karl Rahnner, que escreveu que "o cristão do futuro será místico, isto é, alguém que "experienciou" algo ou não será cristão, porque a espiritualidade do futuro já não se apoiará num ambiente religioso generalizado, anterior à experiência e à decisão da pessoa." Metz aprofundou, para incidir na "mística de olhos abertos", que é mística, mas abrindo os olhos para ver a realidade concreta: os que sofrem, os famintos, os injustiçados, os excluídos, os explorados de todas as maneiras, as crianças e as mulheres violadas, as vítimas todas deste mundo... Com as vítimas inocentes sempre presentes, aqueles e aquelas que foram vítimas inocentes, sem resposta dentro da História para o seu clamor. Há uma dívida da História para com elas; quem poderá pagá-la a não ser Deus?
Tudo começou pela sua própria experiência pessoal. Aos 16 anos, já no estertor do regime nazi, foi chamado às fileiras do exército alemão e, um dia, o comandante enviou-o com uma mensagem que devia entregar e, quando regressou, deparou com todos os companheiros mortos. Este acontecimento trágico mudou-lhe a vida, de tal modo que permanentemente dizia aos seus estudantes, concretamente em Münster: "Se o que aqui dizemos não tiver nada a ver com as nossas vidas e as nossas dores e as dores do mundo, não serve de nada. A Teologia tem que ser significativa." Não pode enredar-se em ritualismos secos, na mera burocracia legalista e na repetição de fórmulas de um tradicionalismo gasto, nem pode esgotar-se num espiritualismo abstracto nem cair numa redução ao foro privado.
O seu pensamento filosófico e teológico viveu acossado pela pergunta: "Como se pode falar de Deus depois de Auschwitz?" Afinal, a História não pode continuar a ser lida apenas a partir dos triunfadores e dos vencedores. Para ser autenticamente cristã, inclusiva, verdadeiramente universal, não pode ignorar nem esquecer o seu reverso: os vencidos, os perdedores, as vítimas.
A pessoa humana tem uma dimensão histórico-social, pública, política, praxística. Por isso, escreveu que a sua Teologia Política "é guiada pela intenção de tirar o seu carácter privado ao mundo conceptual teológico, à linguagem da pregação e da espiritualidade. Procura superar aquele excessivo matiz privado no discurso sobre Deus, a obstinada contraposição entre existência espiritual e liberdade de crítica social."
O Reino de Deus, núcleo da mensagem de Jesus, por palavras e por obras, que o levaram à cruz, constrói-se na História, sendo, portanto, necessário superar os dualismos que cindem a realidade em duas esferas simplesmente contrapostas: privado e público, pessoal e social, teoria e praxis, contemplação e acção, imanência e transcendência. A fé cristã é da pessoa, mas da pessoa nunca isolada; é contemplativa, mas ao mesmo transformadora, "é uma praxis dentro da História e da sociedade, que se concebe como esperança solidária no Deus de Jesus enquanto Deus de vivos e de mortos que chama a ser sujeito, pessoa, na sua presença". Por isso, olha para toda a violência e toda a injustiça, luta solidariamente por um mundo de dignidade para todos, sem esquecer Deus como "o Futuro Absoluto" (Karl Rahner), a quem apela como resposta para todas as vítimas e consumador do Reino que está a caminho. Vive no tempo, na imanência, mas sem esquecer a transcendência, a promessa de eternidade e "a reserva escatológica", que impede de divinizar o tempo e o que no tempo se constrói, os ídolos do mundo.

3. Enigma maior é o do tempo. O que é o tempo? Se soubéssemos o que é o tempo, saberíamos o que somos e quem somos. Quando se medita até ao fundo, deparamos com uma alternativa essencial, que Johann Baptist Metz chamou, dentro do background da situação da crise espiritual do nosso tempo, as duas mensagens contrapostas do tempo: por um lado, a mensagem do tempo com final e, por outro, a mensagem do tempo sem final, isto é, da eternidade do tempo, que aparece nos mitos do eterno retorno e que Nietzsche também retomou de modo dramático.
O Homem arcaico angustiava-se com o sentimento do termo próximo da sua vida e esta angústia do efémero terá paralisado o seu trabalho no mundo. Mas hoje, na opinião de Metz, há uma angústia mais radical, ainda que difusa. Certamente, há angústia perante as catástrofes, o terror, as guerras, a possibilidade da destruição universal, mas a angústia maior - a angústia em todas as angústias - é que não haja fim pura e simplesmente. É o tempo mítico-dionisíaco de Nietzsche: um tempo sem fim e sem finalidade, "inocente", para lá do bem e do mal, com experiências sem fim, sem começo nem termo e com o Homem inserido no ciclo da Natureza. O próprio Nietzsche que, exaltado, aclamou o eterno retorno do mesmo como o Sol do meio-dia também sentiu o seu horror, exclamando: "Asco! Asco! Asco!"
Em contrapartida, temos o tempo bíblico com a esperança escatológica do Deus que vem: no tempo, está em processo de amadurecimento o que é mais do que o tempo, de tal modo que o tempo tem um final e esse final do tempo será simultaneamente a sua consumação. No horizonte do tempo a prazo, o tempo tem um final, que não é a aniquilação mas a plenitude. O tempo com final é o tempo da humanização, do despertar da consciência, do saber que o Homem existe como sujeito incondicionalmente responsável e, assim, culpável concretamente pela "falta de respeito para com a dor alheia", como sujeito capaz de verdade e de obediência à "autoridade insubornável das vítimas", na qual se manifesta a autoridade do Deus que salva. O Deus que, como escreveu São Paulo na Carta aos Romanos, 3, 17, "cria os que não existiam e ressuscita os que morreram", dando-lhes a plenitude da vida.

Anselmo Borges no Diário de Notícias

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue