segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Bento Domingues - Ampliar as perguntas


"Quando se fala das dificuldades do diálogo da Igreja com a sociedade, parece admitir-se que está consumado o exílio da fé cristã no mundo da cultura ocidental e que já não existem pessoas e grupos com sede e fome do Evangelho de Jesus."

1. O mês de Setembro, a ritmos diversos, abre um novo Ano Pastoral. As dioceses, as paróquias e os diversos movimentos começam a executar programas previstos para alimentar, nos praticantes da vida eclesial, formas inovadoras de ir ao encontro das pessoas e dos grupos que parecem longe, indiferentes ou hostis às igrejas.
O programa da diocese de Lisboa, para 2019-2020, tem uma formulação muito generosa, mas que se pode prestar a alguns equívocos: “Sair com Cristo ao encontro de todas as periferias!” Dito assim, até parece que Cristo está ausente das periferias, esperando que alguém se lembre de o conduzir para fora de portas.
De facto, em regime de Cristandade, a pastoral mais corrente – não a única – resumia-se em apresentar, na Catequese, as verdades a crer, os mandamentos a observar e os sacramentos a receber. Na saída para fora dos espaços da Cristandade, supunha-se que era o missionário que levava Cristo para as terras onde Ele nunca tinha chegado. Ele teria de propor aos gentios o Credo cristão, os mandamentos da Lei de Deus e da Igreja, assim como administrar os Sete Sacramentos.
Com o advento da Modernidade, as sociedades ocidentais, com ritmos, formas e em graus diversos, emanciparam-se da tutela das Igrejas e das Religiões. Alguns falam da secularização, não só da sociedade, mas também da vida privada. Antes, nascer e tornar-se cristão eram acontecimentos quase simultâneos. O ambiente cultural exigia a transmissão dos rituais da fé. Com a liberdade religiosa, cada um terá de fazer a sua escolha. As referências cristãs passam a estar fora do ambiente cultural. Por vezes, sobretudo onde vigoravam programas estatais de ateísmo militante, tentou-se eliminar as próprias marcas que tinham deixado na cultura.
Esta situação devia exigir uma mudança na acção pastoral nos países de velha Cristandade. Na verdade, vários ensaios, uns mais arrojados, outros mais tradicionais foram feitos, nomeadamente no século XX, que não vou apresentar aqui e agora. Num mundo em mudança, com sensibilidades tão diversas, a cópia de receitas de sucesso noutros domínios pode ser desastrosa na pastoral eclesial. Esta deve procurar construir-se sobre rocha firme e não sobre a areia, como dizem alguns textos cristãos. 
Quando se fala das dificuldades do diálogo da Igreja com a sociedade, parece admitir-se que está consumado o exílio da fé cristã no mundo da cultura ocidental e que já não existem pessoas e grupos com sede e fome do Evangelho de Jesus. 
É bom não esquecer que sempre foi difícil apresentar Cristo e a sua mensagem no que têm de singular. O que está em causa, neste momento, não é apenas o que sempre foi exigido na autêntica conversão ao seguimento de Cristo, mas descobrir e ampliar as perguntas que são evitadas, no e pelo ruído que afoga o essencial do ser humano, na actualidade.

2. Neste Domingo, a grande proposta é um texto com uma parábola, desdobrada em três, do reencontro com o que parecia perdido [1]. Nasce do acolhimento e do escândalo provocados pelas atitudes de Jesus: os publicanos e os considerados pecadores aproximavam-se todos dele para O ouvirem, mas os fariseus e os escribas murmuravam entre si: este homem acolhe os pecadores e come com eles.
A linguagem das parábolas exige um salto para fora do sentido imediato. Este serve, apenas, como ponto de partida para outras viagens da imaginação, da inteligência e dos afectos. Ao contrário dos catecismos, não procura respostas prontas a servir. Aprofunda e amplia as perguntas inoportunas.
A parábola é a linguagem da saída sem lugar previsto de chegada. Nesta não se pretende mostrar a alegria partilhada da mulher pobre que varre a casa toda para encontrar uma moeda; a desilusão de um jovem aventureiro e as expectativas de voltar ao lar paterno, não como filho, mas como empregado; um pai que sempre esperou o filho perdido; o ressentimento do irmão bem comportado ao ver a festa oferecida ao estroina. Então que terá provocado Jesus a contar esta parábola tão pouco pedagógica?
Importa não esquecer que o vinho novo do Evangelho rebentou com os odres velhos dos fariseus e da exegese dos escribas pretensiosos. Tinham os segredos dos caminhos de Deus fechados nos seus costumes e nas interpretações codificadas dos que se julgavam confidentes do divino. Costumes tão santos, sabedoria tão sublime, provocavam uma cegueira metódica. Jesus, com o seu comportamento insólito, era um mau exemplo para essa religião convencional, a da ortodoxia e a da moral que sabe sempre o que está bem e o que está mal; aquela que sabe qual é a vontade de Deus, em todas as situações e circunstâncias. Nada lhe escapa. É uma religião feita para a denúncia dos comportamentos desviantes, a religião de um deus domesticado.
Pode-se perguntar, que temos nós, hoje, a ver com essa conversa de há dois mil anos?

3. Algumas preocupações com as respostas certas para os novos tempos geraram catecismos arcaicos. Voltavam a dizer o que está certo e o que está errado, criando uma nova casta dos depositários da boa doutrina e dos bons costumes.
Veio o Papa Francisco, com o seu comportamento insólito e a sua palavra liberta e libertadora, e os depositários da boa doutrina e dos bons costumes – mesmo sem a conhecerem e sem os observar – apressaram-se a dizer que ele está a dar cabo da Igreja.
Francisco, porém, sabe que está sempre a ser espiado e que irão aproveitar tudo para o desautorizar e desacreditar. Como não pretende ser infalível e ter solução para todas as questões, até das próprias oposições colhe experiência para abrir caminhos a todas as pessoas de boa vontade, como diria o velho Papa João XXIII: ao reunir os que têm e os que não têm religião, os que têm sensibilidades espirituais e religiosas muito diversas e colocar todo esse mundo em diálogo, aprofunda e alarga as suas perguntas e os seus horizontes. Há mais mundos do que aqueles que cabem na minha capela ou na minha seita. O mundo é de todos e todos devem ser convocados para salvar a casa comum, mesmo sem saber ainda como.
Dir-se-á que o que está a acontecer em muitas partes do mundo é medonho. É! Mas quem nos poderá impedir de festejar os pequenos passos que, por toda a parte, estão a ser dados na direcção da esperança?
Será o tema da próxima semana.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Lc 15, 1-32

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