Papa Francisco em Moçambique |
“Em Moçambique fui semear sementes de esperança, paz e reconciliação numa terra que tanto sofreu no passado recente por causa de um longo conflito armado e que na passada Primavera foi vítima de dois ciclones que causaram danos muito graves.”
Papa Francisco
1. O Papa Francisco voltou a África. Numa viagem de contrastes: por um lado, Moçambique e Madagáscar, dois dos países mais pobres do mundo — Moçambique, com 70% dos 28 milhões de habitantes a viver abaixo do limiar da pobreza, é o décimo mais pobre; Madagáscar é o quinto mais pobre —, e, por outro, a República de Maurício, onde a economia cresce cerca de 5% ao ano, é uma ilha onde fazem férias turistas ricos. Francisco levava na bagagem objectivos essenciais: uma paz duradoura, o cuidado com o meio ambiente, o diálogo inter-religioso, um mundo globalizado justo. Numa visita multitudinária, em todo o lado foi recebido em festa e júbilo, com danças e tambores, como só os africanos sabem fazer.
A viagem decorreu entre 4 e 10 deste mês de Setembro. Ele próprio, no passado dia 12, já em Roma, descreveu o seu périplo por África e o que o moveu: “O Evangelho é o mais poderoso fermento de fraternidade, de liberdade, de justiça e de paz para todos os povos.”
1.1. “Em Moçambique fui semear sementes de esperança, paz e reconciliação numa terra que tanto sofreu no passado recente por causa de um longo conflito armado e que na passada Primavera foi vítima de dois ciclones que causaram danos muito graves.”
Em Moçambique, clamou perante as autoridades: “Não à violência que destrói, sim à paz e à reconciliação.” E, sobre o processo de paz, no qual tem tido papel fundamental a Comunidade de Santo Egídio, quis exprimir o seu “reconhecimento”, dele e de grande parte da comunidade internacional, pelo esforço em ordem à reconciliação, que, sublinhou, “é o melhor caminho para enfrentar as dificuldades que tendes como Nação”. “Vós tendes uma missão valorosa e histórica a cumprir: Que não cessem os esforços enquanto houver crianças e adolescentes sem educação, famílias sem tecto, operários sem trabalho, camponeses sem terra: bases de um futuro de esperança porque é futuro de dignidade. Estas são as armas da paz.”
Certamente pensando no facto de Moçambique, entre 2001 e 2008, ter perdido 3 milhões de hectares de floresta — um total de 11% da sua área florestal (Madagáscar perdeu 3,63 milhões de hectares, o que representa uma diminuição de 21% —, pediu, com a igualdade, a defesa da terra e da vida, frente aos que exploram e desflorestam em seu próprio benefício — os principais responsáveis são os chineses —, num “afã acumulativo que, em geral, nem sequer é de pessoas que habitam estas terras e não é movido pelo bem comum do vosso povo”.
Acusado de visitar Moçambique em campanha eleitoral, Francisco respondeu, já no avião, de regresso a Roma: “Não foi um erro, foi uma opção decidida livremente, porque a campanha eleitoral começou nestes dias e foi eclipsada pelo processo de paz. O importante era ajudar a consolidar este processo. E isto é mais importante do que uma campanha que ainda não começou. Ao fazer o balanço, é necessário consolidar o processo de paz. E também me reuni com os dois opositores políticos, para sublinhar que o importante era isso e não para animar o presidente, mas para sublinhar a unidade do país.”
1.2. Francisco continua a narrativa da sua viagem: “De Maputo segui para Antananarivo, capital de Madagáscar. Um país rico em beleza e recursos naturais, mas vítima da pobreza. Desejei-lhe que, animado pelo seu tradicional espírito de solidariedade, o povo malgaxe possa superar as adversidades e construir um futuro de desenvolvimento, conjugando o respeito pelo meio ambiente e a justiça social.”
Madagáscar, um país esquecido, encontra-se entre os cinco países mais pobres do mundo e os católicos representam 36% da população. A luta contra a pobreza, a crise climática — simbolicamente, contra a desflorestação, Francisco plantou juntamente com o Presidente de Madagáscar um baobá, “a mãe da floresta” — e a necessidade da transformação da sociedade para uma distribuição equitativa dos recursos foram os eixos da intervenção papal.
Uma multidão de mais de cem mil jovens reuniu-se para abraçar o Papa e dialogar com ele. Perante um milhão de fiéis na Missa em Antananarivo, numa esplanada imensa em terrenos da diocese e de um cidadão muçulmano que os cedeu para a celebração, Francisco clamou contra “a cultura dos privilégios e da exclusão: favoritismos, amiguismos e, portanto, corrupção”, advertindo igualmente contra “o fascínio por ideologias que acabam por instrumentalizar o nome de Deus ou a religião para justificar actos de violência, segregação e até homicídio, exílio, terrorismo e marginalização”. “A pobreza não pertence ao plano de Deus”.
O momento mais emocionante da viagem foi o encontro com 8.000 crianças na visita à chamada “cidade da amizade”, Akamasoa, um lugar onde antes havia uma enorme lixeira e agora há casas, pequenas, mas dignas, escolas, espaços de recreio, para milhares de famílias que puderam recuperar o seu trabalho e a dignidade. Foi construída pelos próprios pobres, com a ajuda do padre argentino Pedro Opeka: afinal, “a pobreza não é uma fatalidade”. “Rezemos para que em todo o Madagáscar e noutras partes do mundo se prolongue o brilho desta luz e possamos conseguir modelos de desenvolvimento que privilegiem a luta contra a pobreza e a exclusão social a partir da confiança, da educação, do trabalho e do esforço.”
1.3. “A Segunda-Feira dediquei-a à visita da República de Maurício, conhecido lugar turístico, mas que escolhi como lugar de integração entre diversas etnias e culturas.”
O país, com pouco mais de 1,2 milhões de habitantes, com pessoas de origem indiana, africana, chinesa e europeia, sobretudo francesa, é o único do continente africano com uma maioria hindu (48,5%) — 32,7% são cristãos e 17,2% são muçulmanos —, e é um exemplo para todos no que respeita ao diálogo entre culturas, pessoas e religiões.
Na Missa, na qual participaram 100.000 pessoas, 8% da população, o Papa reflectiu sobre as Bem- aventuranças, “o bilhete de identidade dos cristãos”.
No seu último discurso oficial, fez como que uma síntese, pela positiva, das suas preocupações nesta viagem. Dirigiu-se às autoridades de Maurício, que, desde há anos, possui “não só um rosto multicultural, étnico e religioso mas, sobretudo, a beleza que provém da vossa capacidade de reconhecer, respeitar e harmonizar as diferenças existentes em função de um projecto comum”.
Agradeceu à população o ensinamento que dá ao mundo: “é possível alcançar uma paz estável a partir da convicção de que a diversidade é bela quando aceita entrar constantemente num processo de reconciliação, até selar uma espécie de pacto cultural que faça emergir uma diversidade reconciliada”. Esta é, sublinhou, “base e oportunidade para a construção de uma real comunhão dentro da grande família humana, sem necessidade de marginalizar, excluir ou rejeitar.”
Recordando que Maurício se fez com diversos movimentos migratórios, animou a “assumir o desafio de dar as boas-vindas e proteger os migrantes que vêm hoje à procura de trabalho e, para muitos deles, melhores condições de vida para as suas famílias: preocupai-vos com dar-lhes as boas-vindas como os vossos antepassados souberam acolher-se uns aos outros”.
Também recordou “a tradição democrática instaurada depois da independência e que contribui para fazer da ilha Maurício um oásis de paz”, que há-de prosseguir “lutando contra todas as formas de discriminação.”
Destacando o grande desenvolvimento da ilha, advertiu que “o crescimento económico nem sempre beneficia a todos e que inclusivamente deixa de lado, devido a algumas estratégias da sua dinâmica, um certo número de pessoas, especialmente os jovens. Por isso, quereria animar-vos a promover uma política económica orientada para as pessoas. Animai-vos a não sucumbir à tentação de um modelo económico idólatra que sente a necessidade de sacrificar vidas humanas no altar da especulação e da mera rentabilidade, que só tem em conta o lucro imediato em detrimento da protecção dos mais pobres, do nosso meio ambiente e os seus recursos”. Trata-se, em última análise, de “promover uma mudança de estilos de vida para que o crescimento económico possa realmente beneficiar a todos, sem correr o risco de causar catástrofes ecológicas nem graves crises sociais”.
Dirigindo-se por fim aos líderes religiosos presentes, exprimiu-lhes a sua “gratidão por em Maurício as diferentes religiões, com as suas respectivas identidades, trabalharem em comum para contribuir para a paz social e recordar o valor transcendente da vida contra todo o tipo de reducionismo.
2. Francisco foi, nesta viagem, como sempre, arauto da paz, clamando contra a guerra, a corrupção e a favor da justiça e da fraternidade humana; insistiu no diálogo inter-religioso; arremeteu contra o clericalismo: “a Igreja não pode ser parte do problema, mas porta de solução, de respeito, intercâmbio e diálogo”, às vezes, “sem querer, sem culpa moral, habituamo-nos a identificar a nossa tarefa quotidiana de sacerdotes com certos ritos, com reuniões onde o lugar que ocupamos na reunião, na mesa, é de hierarquia”; defendeu a atenção a ter com o cuidado do meio ambiente; proclamou a alegria: “Jovens, não deixeis que vos roubem a alegria de viver”.
As linhas fundamentais da mensagem essencial, que ficou, tinha-as enunciado numa entrevista, ainda antes da visita, o Secretário de Estado, Cardeal Pietro Parolin. África “precisa de amigos de África, não pessoas que olhem para ela com olhos interesseiros, mas pessoas que realmente procurem ajudar este continente a pôr em prática todos os seus recursos, todas as suas forças para progredir, para avançar.” Mas a primeira linha é que “os africanos devem ser conscientes da sua responsabilidade na busca de soluções para os problemas africanos dentro das suas sociedades, dentro dos seus Estados. Portanto, uma consciência renovada de que o destino de África, o seu futuro, está nas mãos dos africanos: uma assunção de responsabilidade neste sentido para lutar contra todos aqueles fenómenos que impedem o desenvolvimento e a paz.”
Como é hábito, já de regresso a Roma, Francisco, na habitual conferência de imprensa, foi confrontado com a acusação de herético e a ameaça de cisma na Igreja. Dedicarei a minha próxima crónica a esta magna e decisiva questão.