domingo, 15 de setembro de 2019

Anselmo Borges - Francisco em África para o mundo

Papa Francisco em Moçambique
“Em Moçambique fui semear sementes de esperança, paz e reconciliação numa terra que tanto sofreu no passado recente por causa de um longo conflito armado e que na passada Primavera foi vítima de dois ciclones que causaram danos muito graves.” 

Papa Francisco 

1. O Papa Francisco voltou a África. Numa viagem de contrastes: por um lado, Moçambique e Madagáscar, dois dos países mais pobres do mundo — Moçambique, com 70% dos 28 milhões de habitantes a viver abaixo do limiar da pobreza, é o décimo mais pobre; Madagáscar é o quinto mais pobre —, e, por outro, a República de Maurício, onde a economia cresce cerca de 5% ao ano, é uma ilha onde fazem férias turistas ricos. Francisco levava na bagagem objectivos essenciais: uma paz duradoura, o cuidado com o meio ambiente, o diálogo inter-religioso, um mundo globalizado justo. Numa visita multitudinária, em todo o lado foi recebido em festa e júbilo, com danças e tambores, como só os africanos sabem fazer. 
A viagem decorreu entre 4 e 10 deste mês de Setembro. Ele próprio, no passado dia 12, já em Roma, descreveu o seu périplo por África e o que o moveu: “O Evangelho é o mais poderoso fermento de fraternidade, de liberdade, de justiça e de paz para todos os povos.” 

1.1. “Em Moçambique fui semear sementes de esperança, paz e reconciliação numa terra que tanto sofreu no passado recente por causa de um longo conflito armado e que na passada Primavera foi vítima de dois ciclones que causaram danos muito graves.” 
Em Moçambique, clamou perante as autoridades: “Não à violência que destrói, sim à paz e à reconciliação.” E, sobre o processo de paz, no qual tem tido papel fundamental a Comunidade de Santo Egídio, quis exprimir o seu “reconhecimento”, dele e de grande parte da comunidade internacional, pelo esforço em ordem à reconciliação, que, sublinhou, “é o melhor caminho para enfrentar as dificuldades que tendes como Nação”. “Vós tendes uma missão valorosa e histórica a cumprir: Que não cessem os esforços enquanto houver crianças e adolescentes sem educação, famílias sem tecto, operários sem trabalho, camponeses sem terra: bases de um futuro de esperança porque é futuro de dignidade. Estas são as armas da paz.” 
Certamente pensando no facto de Moçambique, entre 2001 e 2008, ter perdido 3 milhões de hectares de floresta — um total de 11% da sua área florestal (Madagáscar perdeu 3,63 milhões de hectares, o que representa uma diminuição de 21% —, pediu, com a igualdade, a defesa da terra e da vida, frente aos que exploram e desflorestam em seu próprio benefício — os principais responsáveis são os chineses —, num “afã acumulativo que, em geral, nem sequer é de pessoas que habitam estas terras e não é movido pelo bem comum do vosso povo”. 
Acusado de visitar Moçambique em campanha eleitoral, Francisco respondeu, já no avião, de regresso a Roma: “Não foi um erro, foi uma opção decidida livremente, porque a campanha eleitoral começou nestes dias e foi eclipsada pelo processo de paz. O importante era ajudar a consolidar este processo. E isto é mais importante do que uma campanha que ainda não começou. Ao fazer o balanço, é necessário consolidar o processo de paz. E também me reuni com os dois opositores políticos, para sublinhar que o importante era isso e não para animar o presidente, mas para sublinhar a unidade do país.” 

1.2. Francisco continua a narrativa da sua viagem: “De Maputo segui para Antananarivo, capital de Madagáscar. Um país rico em beleza e recursos naturais, mas vítima da pobreza. Desejei-lhe que, animado pelo seu tradicional espírito de solidariedade, o povo malgaxe possa superar as adversidades e construir um futuro de desenvolvimento, conjugando o respeito pelo meio ambiente e a justiça social.” 
Madagáscar, um país esquecido, encontra-se entre os cinco países mais pobres do mundo e os católicos representam 36% da população. A luta contra a pobreza, a crise climática — simbolicamente, contra a desflorestação, Francisco plantou juntamente com o Presidente de Madagáscar um baobá, “a mãe da floresta” — e a necessidade da transformação da sociedade para uma distribuição equitativa dos recursos foram os eixos da intervenção papal. 
Uma multidão de mais de cem mil jovens reuniu-se para abraçar o Papa e dialogar com ele. Perante um milhão de fiéis na Missa em Antananarivo, numa esplanada imensa em terrenos da diocese e de um cidadão muçulmano que os cedeu para a celebração, Francisco clamou contra “a cultura dos privilégios e da exclusão: favoritismos, amiguismos e, portanto, corrupção”, advertindo igualmente contra “o fascínio por ideologias que acabam por instrumentalizar o nome de Deus ou a religião para justificar actos de violência, segregação e até homicídio, exílio, terrorismo e marginalização”. “A pobreza não pertence ao plano de Deus”. 
O momento mais emocionante da viagem foi o encontro com 8.000 crianças na visita à chamada “cidade da amizade”, Akamasoa, um lugar onde antes havia uma enorme lixeira e agora há casas, pequenas, mas dignas, escolas, espaços de recreio, para milhares de famílias que puderam recuperar o seu trabalho e a dignidade. Foi construída pelos próprios pobres, com a ajuda do padre argentino Pedro Opeka: afinal, “a pobreza não é uma fatalidade”. “Rezemos para que em todo o Madagáscar e noutras partes do mundo se prolongue o brilho desta luz e possamos conseguir modelos de desenvolvimento que privilegiem a luta contra a pobreza e a exclusão social a partir da confiança, da educação, do trabalho e do esforço.” 

1.3. “A Segunda-Feira dediquei-a à visita da República de Maurício, conhecido lugar turístico, mas que escolhi como lugar de integração entre diversas etnias e culturas.” 
O país, com pouco mais de 1,2 milhões de habitantes, com pessoas de origem indiana, africana, chinesa e europeia, sobretudo francesa, é o único do continente africano com uma maioria hindu (48,5%) — 32,7% são cristãos e 17,2% são muçulmanos —, e é um exemplo para todos no que respeita ao diálogo entre culturas, pessoas e religiões. 
Na Missa, na qual participaram 100.000 pessoas, 8% da população, o Papa reflectiu sobre as Bem- aventuranças, “o bilhete de identidade dos cristãos”. 
No seu último discurso oficial, fez como que uma síntese, pela positiva, das suas preocupações nesta viagem. Dirigiu-se às autoridades de Maurício, que, desde há anos, possui “não só um rosto multicultural, étnico e religioso mas, sobretudo, a beleza que provém da vossa capacidade de reconhecer, respeitar e harmonizar as diferenças existentes em função de um projecto comum”. 
Agradeceu à população o ensinamento que dá ao mundo: “é possível alcançar uma paz estável a partir da convicção de que a diversidade é bela quando aceita entrar constantemente num processo de reconciliação, até selar uma espécie de pacto cultural que faça emergir uma diversidade reconciliada”. Esta é, sublinhou, “base e oportunidade para a construção de uma real comunhão dentro da grande família humana, sem necessidade de marginalizar, excluir ou rejeitar.” 
Recordando que Maurício se fez com diversos movimentos migratórios, animou a “assumir o desafio de dar as boas-vindas e proteger os migrantes que vêm hoje à procura de trabalho e, para muitos deles, melhores condições de vida para as suas famílias: preocupai-vos com dar-lhes as boas-vindas como os vossos antepassados souberam acolher-se uns aos outros”. 
Também recordou “a tradição democrática instaurada depois da independência e que contribui para fazer da ilha Maurício um oásis de paz”, que há-de prosseguir “lutando contra todas as formas de discriminação.” 
Destacando o grande desenvolvimento da ilha, advertiu que “o crescimento económico nem sempre beneficia a todos e que inclusivamente deixa de lado, devido a algumas estratégias da sua dinâmica, um certo número de pessoas, especialmente os jovens. Por isso, quereria animar-vos a promover uma política económica orientada para as pessoas. Animai-vos a não sucumbir à tentação de um modelo económico idólatra que sente a necessidade de sacrificar vidas humanas no altar da especulação e da mera rentabilidade, que só tem em conta o lucro imediato em detrimento da protecção dos mais pobres, do nosso meio ambiente e os seus recursos”. Trata-se, em última análise, de “promover uma mudança de estilos de vida para que o crescimento económico possa realmente beneficiar a todos, sem correr o risco de causar catástrofes ecológicas nem graves crises sociais”. 
Dirigindo-se por fim aos líderes religiosos presentes, exprimiu-lhes a sua “gratidão por em Maurício as diferentes religiões, com as suas respectivas identidades, trabalharem em comum para contribuir para a paz social e recordar o valor transcendente da vida contra todo o tipo de reducionismo. 

2. Francisco foi, nesta viagem, como sempre, arauto da paz, clamando contra a guerra, a corrupção e a favor da justiça e da fraternidade humana; insistiu no diálogo inter-religioso; arremeteu contra o clericalismo: “a Igreja não pode ser parte do problema, mas porta de solução, de respeito, intercâmbio e diálogo”, às vezes, “sem querer, sem culpa moral, habituamo-nos a identificar a nossa tarefa quotidiana de sacerdotes com certos ritos, com reuniões onde o lugar que ocupamos na reunião, na mesa, é de hierarquia”; defendeu a atenção a ter com o cuidado do meio ambiente; proclamou a alegria: “Jovens, não deixeis que vos roubem a alegria de viver”. 
As linhas fundamentais da mensagem essencial, que ficou, tinha-as enunciado numa entrevista, ainda antes da visita, o Secretário de Estado, Cardeal Pietro Parolin. África “precisa de amigos de África, não pessoas que olhem para ela com olhos interesseiros, mas pessoas que realmente procurem ajudar este continente a pôr em prática todos os seus recursos, todas as suas forças para progredir, para avançar.” Mas a primeira linha é que “os africanos devem ser conscientes da sua responsabilidade na busca de soluções para os problemas africanos dentro das suas sociedades, dentro dos seus Estados. Portanto, uma consciência renovada de que o destino de África, o seu futuro, está nas mãos dos africanos: uma assunção de responsabilidade neste sentido para lutar contra todos aqueles fenómenos que impedem o desenvolvimento e a paz.” 
Como é hábito, já de regresso a Roma, Francisco, na habitual conferência de imprensa, foi confrontado com a acusação de herético e a ameaça de cisma na Igreja. Dedicarei a minha próxima crónica a esta magna e decisiva questão.

Anselmo Borges no DN
Padre e professor de Filosofia 

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue