Papa no "La Stampa" |
1. O Papa Francisco deu no passado dia 9 uma longa entrevista ao diário italiano "La Stampa" sobre os temas anunciados no título. Dada a sua importância, fica aí uma síntese, acrescentando algumas reflexões pessoais, referentes concretamente à possibilidade da ordenação de homens casados, um dos temas na agenda dos trabalhos do próximo Sínodo para a Amazónia, a realizar em Roma no próximo mês de Outubro, e ao problema imenso e dramático das migrações.
Francisco constata que o sonho dos pais fundadores da Europa unida "se debilitou com os anos", sendo "necessário salvá-lo". Quando se fala dos pais fundadores, trata-se nomeadamente dos políticos franceses Robert Schuman e Jean Monnet, do alemão Konrad Adenauer e do italiano Alcide De Gasperi. Eles perceberam que era urgente superar as feridas deixadas pela Segunda Guerra Mundial e "o seu sonho teve consistência porque foi uma consequência desta unidade". É esta unidade que está fragilizada e que é preciso valorizar e realçar. Sem renunciar, evidentemente, à própria identidade, mas sem cair nos extremos do soberanismo nem no populismo. A Europa não pode nem deve fragmentar-se. "É uma unidade não só geográfica, mas também histórica e cultural." Apesar das dificuldades, Francisco mostra-se confiante em que, com um novo Parlamento e novos órgãos de governo, "se inicie um processo de impulso nesse sentido, que avance sem interrupções".
Para isso, impõe-se o diálogo, pois "na União Europeia deve-se falar, argumentar, conhecer. Muitas vezes só se ouve monólogos de compromisso. Não, é preciso escutar." Este diálogo deve ter como "mecanismo mental" o lema: "Primeiro a Europa e depois cada um de nós". Evidentemente, este "cada um de nós não é secundário, mas a Europa conta mais". Para um autêntico diálogo, "é necessário partir da identidade própria; a identidade própria não se negoceia, integra-se. A identidade é uma riqueza - cultural, nacional, histórica, artística - e cada país tem a sua, mas que seja integrada com o diálogo." "Isto é decisivo: desde a identidade própria é necessário abrir-se ao diálogo para receber da identidade dos outros algumas coisas maiores. Nunca se pode esquecer que o todo é superior às partes. Cada povo conserva a sua própria identidade na unidade com os outros."
É neste enquadramento que se deve atender aos perigos e enfrentá-los: o soberanismo e o populismo. "O soberanismo é uma atitude de isolamento. Estou preocupado porque se ouvem discursos que se parecem com os de Hitler em 1934. ´Primeiro nós. Nós... nós...": estes são pensamentos aterradores. O soberanismo é fechar-se. Um país deve ser soberano, mas não fechado. A soberania deve ser defendida, mas as relações com outros países e com a Comunidade Europeia também devem ser protegidas e promovidas. O soberanismo é um exagero que acaba sempre mal: leva a guerras". Acrescentou: O populismo também "fecha as nações" como o soberanismo. "O povo é soberano (tem uma maneira de pensar, de exprimir-se e de sentir, de avaliar); pelo contrário, os populismos levam-nos aos soberanismos: esse sufixo, "ismos", nunca acaba bem."
Sobre a identidade cristã da Europa, sublinhou que "a Europa tem raízes humanistas e cristãs, é a História que o diz. E quando digo isto, não separo católicos, ortodoxos e protestantes."
Um dos desafios maiores para a Europa é a imigração. Acentuou, à partida, que não se pode perder de vista o direito à vida. "Os imigrantes chegam, principalmente, para fugir da guerra ou escapar à fome, do Médio Oriente e da África. Quanto à guerra, devemos comprometer-nos e lutar pela paz. A fome afecta principalmente a África." Lembrou que, chegados às costas europeias, "acolher também é uma missão cristã, evangélica. As portas devem estar abertas, não fechadas." Recebidos, apelou a que sejam acompanhados, promovidos e integrados. Ao mesmo tempo pediu prudência por parte dos governos, sublinhando que "quem governa é chamado a reflectir sobre quantos imigrantes podem ser acolhidos."
Na entrevista, também falou do meio ambiente e, nesse contexto, do Sínodo para a Amazónia em Outubro próximo. Pediu que se leia a sua encíclica Laudato si", "porque quem não a leu não compreenderá nunca o Sínodo sobre a Amazónia. A Laudato si" não é uma encíclica verde, é uma encíclica social que se baseia sobre uma "realidade verde", a protecção da Criação". Para Francisco, é esta a justificação deste Sínodo: A Amazónia é "um lugar representativo e decisivo. Juntamente com os oceanos contribui de maneira determinante para a sobrevivência do planeta. Grande parte do oxigénio que respiramos vem-nos de lá. Por isso, a desflorestação significa matar a Humanidade." Criticando os danos causados pelos interesses dos "sectores dominantes" sobre a região, desafiou a classe política a eliminar "os compadrios e corrupções" e a assumir as suas responsabilidades, "responsabilidades concretas", para salvar a Amazónia e a Humanidade.
Ainda neste contexto, uma vez que no "Instrumento de trabalho" para o Sínodo se fala da possibilidade da ordenação de homens casados, por causa da falta de clero numa região tão extensa, foi-lhe perguntado se este será um dos temas principais do Sínodo. Resposta: "Não, de modo nenhum. Trata-se apenas de um número do "Instrumento de trabalho". O importante serão os ministros da evangelização e os diferentes modos de evangelizar."
2. Algumas reflexões.
2. 1. O Papa Francisco moderou o tom ao falar da possibilidade da ordenação de homens casados. Também porque sabe que os ultraconservadores, liderados pelo cardeal Gerhard Müller, ex-Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que acusou de "herético" o documento preparatório do Sínodo, se lhe opõem também neste tema. Pessoalmente, estou convicto de que essa possibilidade se concretizará precisamente neste Sínodo, abrindo lentamente a porta ao fim da lei do celibato obrigatório e da discriminação das mulheres na Igreja. Note-se a observação de agrado de Francisco pela eleição de Úrsula von der Leyen para presidir à Comissão Europeia: "Porque uma mulher pode ser adequada para voltar a pôr em marcha a força dos pais fundadores." As mulheres "têm a capacidade de acompanhar, unir". Pergunta-se: Porque não também na Igreja?
2. 2. Quero sublinhar a lucidez com que o porta-voz da Conferência Episcopal Espanhola, Luis Argüello, depois de constatar e lamentar que "continuam os barcos à deriva e mortos no Mediterrâneo e noutros lugares de cruzamento entre morte e esperança, opressão e liberdade, fome e segurança", apresentou o que se poderia e deveria considerar os eixos da política migratória: "Afirmar a dignidade sagrada da vida, organizar a hospitalidade, combater as máfias e estudar as causas económicas e políticas das migrações forçadas podem ser elementos de um programa de governo para o bem comum." O que está em causa é a nossa humanidade.
Neste contexto, eu que há muito tempo defendo algo de parecido com um "Plano Marshall" para África, quero igualmente sublinhar a lucidez das declarações do Presidente da República Portuguesa na sua recente visita oficial à Alemanha. Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que a União Europeia tem de ir "muito mais longe" na cooperação e apoio ao desenvolvimento em África: isso faz parte substancial de uma resposta "duradoura" ao "drama das migrações". Quem emigra? "Quem não tem condições para viver onde vive", cabendo, por isso, à União Europeia como um todo encontrar formas de ajudar a "criar essas condições". Não se trata de "tentar resolver a questão no ponto de chegada, mas de resolvê-lo no ponto de partida". "A Europa tem de apostar em África porque, sendo importante o relacionamento da Europa com todo o mundo, há aqui este continente vizinho, que tem muitas afinidades com a Europa desde sempre, e só isso poderá efectivamente criar condições para duradouramente não existir o drama das migrações." O Presidente português disse ainda que a Alemanha e Portugal coincidem na necessidade de mais colaboração "entre a união Europeia e África".
Ainda no quadro das migrações, o próprio Papa Francisco tem chamado a atenção para a necessidade de integrar os migrantes. Mas, aqui, acrescento eu, também eles terão de fazer um esforço para se integrar. Neste contexto, não posso aceitar os protestos de islamistas e feministas na Holanda contra a lei que proíbe a burka (não deixa ver nenhuma parte do rosto) e o niqab (cobre o corpo e a cara, exceptuando os olhos), lei que entrou em vigor no passado dia 1. Desde há muito tempo que me manifestei contra o uso da burka e do niqab, não por motivos religiosos, mas cívicos. De facto, no espaço público, todo o cidadão deve poder ser reconhecido.
Anselmo Borges, no DN
Padre e professor de Filosofia