e quis que houvesse um dia de descanso semanal"
A preguiça é, segundo a doutrina da Igreja Católica, um dos sete pecados capitais e até há um ditado que a classifica como a mãe de todos os vícios. Num tempo em que preguiçar é um luxo a que poucos podem dar-se, perguntámos ao padre Anselmo Borges porque é que a Igreja a olha como uma falta tão grave.
Texto de Catarina Pires | Fotografia Leonel de Castro/Global Imagens
A preguiça era um dos sete pecados capitais. Porquê?
Era e é. Os pecados capitais são sete: soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja, preguiça. Sete é um número perfeito. Neste caso, número perfeito dos vícios que estão à cabeça de todo o mal, por isso se chamam capitais (de capitis, cabeça) e de que as pessoas devem libertar-se. Porquê? Os vícios são-no porque estragam a nossa vida ou a vida dos outros, prejudicam-nos, fazem-nos mal. Pergunto: a preguiça não é contra uma vida autêntica? Não dizemos de alguém preguiçoso, que não trabalha nem cuida da família, que é um parasita e que está a prejudicar outros? Até há um ditado que diz que “a preguiça é a mãe de todos os vícios”.
Mas não é um exagero que o que hoje é quase uma necessidade ou até direito, como escreveu Lafargue, assuma tal gravidade?
No sentido que expliquei, não.
Tudo depende do que se entender por preguiça,
que é um mal se for a recusa do trabalho
e o tentar viver à custa dos outros ou encostado ao Estado.
É preciso cultivar o valor do trabalho?
Temos de “ganhar” a vida. A vida é um dom, mas, por causa da “neotenia” (viemos ao mundo por fazer e temos de fazer-nos, realizar-nos), temos de trabalhar. O trabalho é uma das características humanas que nos distinguem dos outros animais. Transformando o mundo pelo trabalho, transformamo-nos a nós e realizamo-nos. Por outro lado, o trabalho implica uma tarefa em comum: pelo trabalho, realizamo-nos coletivamente, uns com os outros. E há o trabalho enquanto esforço duro, mas também há a alegria de ter realizado um trabalho, uma obra (em inglês, trabalhar diz-se to work, que vem do grego érgon, obra). Admiramos quem realizou uma obra.
Que significado têm os pecados capitais?
São vícios que estão na base de uma existência má para nós e para os outros. Não é verdade que a soberba nos estraga a vida, levando à arrogância e ao desprezo dos outros? Não deve dizer-se o mesmo da avareza, pois acabamos por dar mais importância às coisas do que às pessoas? E da luxúria, que desumaniza a sexualidade? Da ira, que pode levar à violência e a matar? Da gula, que dá cabo até da saúde? Da inveja, que se entristece com o bem dos outros? E da preguiça, como disse.
Segundo a Bíblia, até Deus, após a criação, descansou
e quis que houvesse um dia de descanso semanal,
para que o ser humano soubesse que não é uma besta de carga.
O problema agora é que as pessoas se esgotam a produzir e a consumir.
Fez recentemente um elogio do inútil, numa crónica sua no Diário de Notícias. A preguiça não é também uma forma desse inútil cuja importância sublinha?
Tudo depende do que se entender por preguiça, que é um mal se for a recusa do trabalho e o tentar viver à custa dos outros ou encostado ao Estado. Mas faço o elogio do inútil, e é necessário sublinhar isso num tempo em que tudo se compra e tudo se vende, como se os únicos valores fossem os do ídolo dinheiro. É preciso voltar ao gratuito: uma flor que se oferece, contemplar a beleza, fazer silêncio para ouvir melhor: a grande música, que é o divino no mundo, extasiar-se com um pôr-do-sol, a lua e as estrelas, a arte em geral, a poesia, o saber pelo saber, rezar, meditar, ir ao mais íntimo de si para tocar o essencial do mistério…
Há quem encare esse tempo de contemplação e silêncio, por exemplo, como preguiça. Numa sociedade acelerada como a nossa e centrada no trabalho e no desempenho, como conquistar tempo para essa “preguiça boa”?
É essencial tempo para o gratuito, para o ócio. A nossa palavra escola vem do grego scholê, que significa ócio. Mas trata-se do ócio próprio dos cidadãos, tempo livre para pensar (lá está a filosofia) e governar a pólis. O problema hoje é que tudo, até as férias, se tornou negócio, a negação do ócio. Tudo está mercantilizado. Outro veneno do nosso tempo: o desassossego interior, a agitação, a sociedade-espetáculo…
O maior problema é já não sabermos como usar o tempo livre?
Segundo a Bíblia, até Deus, após a criação, descansou e quis que houvesse um dia de descanso semanal, para que o ser humano soubesse que não é uma besta de carga. O problema agora é que as pessoas se esgotam a produzir e a consumir, até se consomem a consumir, esquecendo que o homem é, constitutivamente, trabalhador e festivo. E consumimo-nos mesmo, sem tempo para viver. Simplesmente isso: viver o milagre do ser e de existir!
Não penso que os portugueses sejam propriamente preguiçosos.
Somos é pouco produtivos, por motivos vários:
falta de qualificações, falta de salários justos e motivadores,
falta de bons gestores…
O que tem a preguiça de bom e de mau?
Já lhe disse em que sentido a preguiça é mal. Mas é um bem necessário naquele outro sentido de não fazer nada, pura e simplesmente para se poder viver o milagre de existir. Somos seres festivos e precisamos de festejar, conviver com a família, apreciando um bom copo de vinho, apanhar sol relaxadamente deitados na praia…
Diz-se muitas vezes dos portugueses que são preguiçosos. São ou a “acusação” é uma injustiça?
Não penso que os portugueses sejam propriamente preguiçosos. Somos é pouco produtivos, por motivos vários: falta de qualificações, falta de salários justos e motivadores, falta de bons gestores… Veja-se como os trabalhadores portugueses são apreciados no estrangeiro. Reflita-se sobre as razões disso. Mas concordo que também há gente cujo ideal é viver à custa dos outros… E há maus exemplos também: o que faz metade dos deputados que, como disse Macário Correia, nada fazem de útil, apenas se passeiam a ver passar o tempo, vivendo à custa dos contribuintes?
Perfil
Anselmo Borges
Doutor em Filosofia, Anselmo Borges, 75 anos, é padre da Sociedade Missionária Portuguesa, professor universitário, comunicador e autor de vários livros em que reflete sobre a religião, o seu lugar na sociedade atual, o pensamento contemporâneo e diversas questões da atualidade. O diálogo inter-religioso e o regresso aos valores essenciais do Evangelho estão na base da sua reflexão. Anselmo Borges é cronista do Diário de Notícias.
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Nota: Com a devida vénia aos autores, texto e fotografias