Anselmo Borges |
1. No meio desta tragédia da pedofilia do clero, que coloca a Igreja Católica numa crise sem precedentes, e quando se pode erguer a suspeita de que ela é um antro de anormais e pedófilos, parece-me justo esclarecer que, no mundo dos pedófilos, a percentagem dos padres é mínima.
Sinceramente, esta constatação não é para mim de modo algum motivo de consolação. Pelo contrário. De facto, este dado só vem confirmar que o número de crianças que sofreram e que sofrem é muitíssimo mais vasto do que aquilo que se poderia imaginar.
Depois, os abusos de menores e adultos fragilizados por parte do clero têm uma agravante terrível: as pessoas confiavam, diria que de modo incondicional, nos padres e na Igreja, e foi essa confiança que foi traída. Uma traição que envergonha os católicos. E a agravar ainda mais a situação: responsáveis, incluindo bispos e cardeais e a Cúria Romana, ocultaram e encobriram estes horrores, porque pensaram que o mais importante era defender e salvaguardar a honra e o prestígio da Igreja enquanto instituição. Evitar a todo o custo o escândalo era a palavra de ordem. Deste modo, o Evangelho foi ferido de modo brutal no seu núcleo, que é colocar a pessoa e a sua dignidade no centro, sobretudo quando se trata de vítimas inocentes. Uma catástrofe moral.
Sobre as crianças, há duas palavras essenciais de Jesus no Evangelho, que é necessário continuamente relembrar. A primeira: "Deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o Reino de Deus. Quem quiser entrar no Reino de Deus deve ser como elas." Elas são simples e não discriminam... A outra palavra de Jesus é terrível: "Ai de quem escandalizar uma criança, ai de quem fizer mal a uma criança. Era melhor atar-lhe a mó de um moinho ao pescoço e lançá-lo ao mar."
2. Causas para este colapso moral são muitas. Mas o Papa Francisco apresenta como principal o clericalismo e, consequentemente, o carreirismo, que ele, desde o princípio, diz que constituem "a peste da Igreja", sempre em conexão com a Cúria Romana, a corte, de que ele diz que é "a lepra do papado". Neste contexto, Francisco associa "abusos sexuais, de poder e consciência". Disse, há uns meses, ao episcopado chileno: "Há uma ferida aberta, dolorosa, e até agora foi tratada com um remédio que, longe de curar, parece tê-la aprofundado mais na sua espessura e dor. Os problemas que hoje se vivem dentro da comunidade eclesial não se solucionam apenas abordando os casos concretos e removendo pessoas. Constituiria grave omissão da nossa parte não aprofundar nas raízes. Essa psicologia de elite ou elitista acaba por gerar dinâmicas de divisão, separação, círculos fechados, que desembocam em espiritualidades narcisistas e autoritárias nas quais, em vez de evangelizar, o importante é sentir-se especial, diferente dos outros, pondo assim em evidência que nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. Messianismos, elitismos, clericalismos, são todos sinónimos de perversão no ser eclesial."
No seu comentário, Ramón Alario caracteriza estas palavras como "duras, corajosas, clarividentes", pois mostram que é preciso ir à raiz deste tsunami da pederastia do clero e atacá-la enquanto "problema estrutural", portanto, para lá da responsabilidade das pessoas concretas. Evidentemente, o celibato imposto tem de ser considerado, mas como parte de uma estrutura clerical muito mais ampla e um dos seus pilares. Alguns dos elementos que fazem parte desta estrutura: "concentração do poder nas mãos da clerezia", poder hierarquizado e assente na contraposição clérigos/leigos; um poder patriarcal e machista, que exclui as mulheres; a carreira e ascensão no poder fazem-se mediante dois mecanismos complementares: "a obediência e/ou a hipocrisia"; "uma concepção e prática dualista e maniqueia" concretamente em relação à sexualidade; "sobrevalorização do celibatário", considerado mais perfeito do que o casado, porque mais próximo de Deus; o celibato obrigatório é "uma imposição legal" para poder pertencer a esta classe superior; o clero está à frente de "comunidades reduzidas a lugares de culto e serviço religioso à volta do padre, sem voz nem voto nas decisões de base: convertidas em grupos menores de idade...".
Depois, pode dar isto, segundo aquela diatribe dura e melancólica de Nietzsche contra os padres, prevenindo contra a infelicidade, que traz consigo sempre mais infelicidade: "Até entre eles há heróis. Muitos deles sofreram demasiado: por isso, querem fazer sofrer os outros." Nietzsche, que proclamou a morte de Deus, também deixou escrito, na mesma obra, Assim Falava Zaratustra: "Eu só acreditaria num deus que soubesse dançar."
3. Francisco quer renovar a Igreja, refontalizá-la, levando-a às origens, com o Evangelho de Jesus. Tolerância zero para a pedofilia. Transparência nas contas do Banco do Vaticano. Reforma profunda da Cúria. Uma Igreja fraterna, pobre, em saída para as periferias geográficas e existenciais. Uma Igreja viva, que não é museu. Sem clericalismo, capaz de se aproximar dos divorciados recasados, dos homossexuais, que são católicos como os outros (o problema não é ser homossexual, o problema é "o lóbi gay", diz). Francisco também está próximo dos mais desfavorecidos e critica o capitalismo desenfreado, escreveu uma encíclica, a Laudato Sí, apelando à necessidade de salvaguardar a Terra, criação de Deus e nossa casa comum, e também à necessidade de humanitariedade para com os migrantes e refugiados...
Evidentemente, os rigoristas fariseus e os lóbis económicos não gostam e atacam-no ferozmente, acusando-o inclusivamente de heresia.
Recentemente, o arcebispo Carlo Maria Viganò, num golpe cobarde e vil, pretendeu acusá-lo de cumplicidade e encobridor. Francisco, naquela sabedoria só dele, disse aos jornalistas que fossem profissionais e cumprissem o seu dever de investigação, e eles cumpriram e a imprensa internacional desmascarou o ex-núncio Viganó e os seus apaniguados, envolvidos em mentiras e contradições. E a Igreja universal, que queriam ver desunida, tem vindo massivamente a manifestar o seu apoio incondicional a Francisco. Também a Conferência Episcopal Portuguesa o fez. Para lá dos eclesiásticos, é longa a lista de políticos (incluindo Trump) e figuras públicas que vieram em defesa de Francisco.
Quem já anunciava que dentro de semanas ou meses teríamos a renúncia de Francisco e um Papa conservador a suceder-lhe devia saber que ele já preveniu que não sai a pontapé. Como tenho vindo a repetir, estou convicto de que Francisco, nesse encontro admirável de franciscano e jesuíta, não se demite nem se deprime. E não se ficará só com pedidos de perdão e exigência de justiça, incluindo a justiça civil. Até porque é preciso ir mais longe e fundo. Pode vir aí um Sínodo - Francisco está continuamente a falar da sinodalidade da Igreja, que quer dizer necessidade de caminhar juntos e em comum -, um Sínodo enquanto reunião universal de toda a Igreja, com representação de bispos, mas também de padres, de religiosos e de religiosas, da Cúria, de leigos e de leigas, portanto, eles e elas, na devida proporção, sob a presidência do Papa. Para debater esta e muitas outras questões. A que se deve esta tragédia? Como caminhar para estruturas mais democráticas na Igreja? Que novo tipo de padre? Ordenar homens casados? Pôr fim à lei do celibato? Qual o papel das mulheres na Igreja? É legítimo continuar a discriminá-las, contra a vontade de Jesus? O que é que as impede de poderem presidir à celebração da Eucaristia? Que moral sexual? O que é que a Igreja pensa de si mesma, da sua identidade e missão? Como é que deve ir ao encontro da Humanidade actual, com os seus novos problemas, questões de bioética, questões que têm que ver com o trans-humanismo e o pós-humanismo, a justiça social, os direitos humanos, o diálogo ecuménico e inter-religioso, a paz num mundo globalizado...
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia