Georgino Rocha |
Jesus vem para o mar da Galileia, depois de andar por terras de pagãos desconsiderados pelos judeus. Já não é a primeira vez. Quer afirmar por atitudes e palavras que a novidade de Deus é para todos, a salvação é universal. Afirmação que contraria directamente as convicções mais arreigadas dos fiéis observantes da lei judaica. E ergue-se logo a questão, tantas vezes repetida ao longo da missão pública de Jesus: De que lado está a verdade? Quem interpreta com mais fidelidade a tradição das origens e quer reajustar as práticas actuais àquele sentido criacional?
No caminho, apresentam-lhe um surdo-mudo e fazem-lhe o pedido de impôr as mãos sobre ele. São gente anónima, que faz sua a situação precária deste homem. São gente que, mesmo ali, se vê privada da presença de Jesus que se retira com ele para um local próximo, mas afastado. São gente que, paciente e confiante, aguarda o resultado deste encontro tu-a-tu, de diálogo pessoal e da possível acção curativa. É gente que, no regresso de ambos e perante o sucedido, reconhece o alcance do gesto de Jesus, exlamando “cheios de assombro: Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e os mudos falem”. Quer dizer: vêem o alcance do benefício alcançado por uma pessoa particular e abrem-lhe o horizonte universal.
Que riqueza de mensagem encerra esta narrativa que São Marcos (7, 31-37) faz no capítulo dedicado à cegueira dos discípulos, na sequência de outras cegueiras: a das autoridades e a do mundo. O surdo-mudo visualiza, como símbolo, estas cegueiras e outras limitações humanas. Vamos procurar nesta mensagem alguns pontos nucleares que possam ajudar a nossa vida de cristãos inseridos na sociedade actual, sociedade que tem enormes ferramentas de comunicação e manifesta notórias carências de relação humana e de perspectivas de proximidade.
Jesus está a caminho, anda de terra em terra, passa em locais onde facilmente pode ser encontrado, sem exigências prévias nem marcação de horário. Está a caminho e acolhe quem surge. Por ser procurado ou por ser apresentado, como no episódio de hoje.
Jesus provoca o encontro pessoal. É o bem da pessoa que lhe interessa; não o olhar curioso da multidão, nem porventura a sua aprovação. É melhor que reconheça e não fique indiferente. É melhor que se deixe interpelar e queira compreender o alcance dos sinais que realiza para evidenciar a novidade do amor de Deus Pai. Ele sabe que, sem encontro pessoal, não se dá a relação de profundidade que o amor exige e sustenta.
Faz-nos bem um mergulho no nosso mundo interior a fim de darmos uma resposta sincera a estas perguntas: como estou no meu encontro pessoal com Jesus? Procuro captar o seu olhar de misericórdia e o seu agir de compaixão solidária? E sou coerente no meu proceder?
Jesus desperta os sentidos ao surdo-mudo. De contrário, manter-se-ia na situação de incomunicação, de isolamento, de exclusão religiosa e social. Como estão tantos dos nossos concidadãos. Sentidos despertos são janelas do espírito, fontes de informação que chega e que parte, pontos de encontro e de relação da pessoa consigo mesma, com os outros e com o ambiente, com Deus. É no espaço dos sentidos que Jesus realiza a cura do surdo-mudo, que a Igreja faz a celebração dos sacramentos de vida nova e de sanação das feridas do pecado. Educar os sentidos é humanizar as relações sociais e religiosas e favorecer a iniciação cristã.
“Jesus comunica sobretudo com o corpo: o texto fala de mãos, dedos e tato, de escuta e de ouvidos, de língua, saliva e palavra, Se o nosso corpo é o nosso modo de estar no mundo e de comunicar com o mundo, Jesus deve acordar a vida corporal deste homem, deve despertar-lhe os sentidos para que possa reencontar o sentido de viver. O espiritual acontece sempre graças à mediação corporal”, afirma Manicardi no seu Comentário à Liturgia Dominical e Festiva, ano B, pág 134.
O cuidado do corpo encontra assim uma perspectiva de grande alcance. Relativiza o culto em voga e humaniza as depreciações antigas e, se calhar, ainda persistentes em nichos de pessismo doentio. O corpo é hoje entendido como o todo da pessoa, unidade de diversidades, físico e espírito, indivíduo e ser em relação, sentimentos e afectos, inteligência e vontade e outras funções cerebrais, consciência e sua abertura a Deus que Jesus Cristo nos dá a conhecer como comunhão de pessoas divinas. Corpo que se expressa na corporeidade, na corporalidade, termos usados em certos meios eruditos.
Dois sentidos desempenham funções de grande relevo: o ouvido e a língua. São eles que, de modo especial, facilitam a comunicação. De contrário, a pessoa fica surda e muda. Ou mesmo ouvindo e falando bem, faz-se surda e muda para certas realidades interpelantes. E campeia a surdez num mundo de ruído, sobretudo em relação ao grito das vítimas e dos pobres; num mundo que não quer escutar palavras de bom senso, de verdade e de luz; num mundo de muita informação e pouca comunicação. E numa Igreja, tantas vezes surda aos jovens e seus anseios, às prioridades do Evangelho e seus apelos de conversão. Sem esquecermos que a surdez também nos atinge a nós e nos impede de ouvir e decifrar os gemidos gritantes de uma sociedade em trânsito em busca de sentido em todos os âmbitos de realização.
Abre-te «Effetá», diz Jesus, depois de meter os dedos nos ouvidos e de tocar na língua. E acontece o inaudito: O surdo-mudo começou logo a ouvir e “a falar correctamente”. Não por eficácia de magia ou qualquer outro truque de prestidigitador. Mas por graça de Deus que Jesus invoca ao erguer “os olhos ao Céu”. Gesto acompanhado de um suspiro que deixa transparecer o seu estado emocional face à cegueira de quem não penetrava no alcance dos sinais/milagres que realizava.
Também a nós na celebração normal do baptismo é dito: “Abre-te!” para em breve escutares a Palavra de Deus e a proclamares com alegria e entusiasmo. Para, como exorta o Papa Francisco, sermos discípulos missionários. Para abrirmos “a nossa vida a Jesus, os nossos poros à sua graça libertadora que desbloqueia as nossas incoerências e nos impele a agir no mundo cheios de alegria, serenidade e confiança”. Experimenta: sentidos abertos e atentos comunicam melhor.
Georgino Rocha