Anselmo Borges |
1.Num tempo de a-teísmo, no sentido radical da palavra: "sem Deus", pior ainda, indiferente perante a questão de Deus, gostei muito da entrevista de Lídia Jorge ao Expresso, que a jornalista Carolina Reis titulou com uma citação: "A ideia de haver ou não Deus persegue a minha vida".
Na bela entrevista, a questão de Deus ocupa lugar absolutamente central. Ao desafio da jornalista: "A fé tem sido um tema transversal na sua vida", responde: "Há dois tipos de fé. Tenho fé no instinto de sobrevivência dos homens, no instinto de fraternidade. É a minha fé maior. E depois há outra fé, numa espécie de amparo que poderá haver para os homens. E a minha dúvida é sempre entre estes dois movimentos. Quero acreditar que não estamos sozinhos, que atrás daquelas estrelas que eu via quando era criança há uma força maior, que as criou e nos há-de receber. É a minha fé emocional. Mas se ponho o raciocínio a funcionar não chego lá. Gosto das pessoas que acreditam em Deus. Acho que estão mais amparadas na vida. Estão mais felizes porque têm um sentido." "Ainda tem esperança em acreditar?" Responde: "Tenho. E vivo isso com muita intensidade. A ideia de haver ou não haver Deus persegue a minha vida. Chego a sonhar com isso. E depois acordo e fico cheia de pena porque queria muito que existisse. Não para que a justiça seja feita no além, ou só no aquém, mas como face de beleza absoluta. A bondade é uma parte da beleza."
Lídia Jorge foi educada no catolicismo. Mas aos 16 anos afastou-se da Igreja, pois "vivia com revolta com o pensamento dogmático" e por causa da ideia de inferno, "dizia que não era possível que existisse uma instância tão injusta que condene para a eternidade pessoas que apenas vivem 50, 60, 70 anos". Aqui, lembrei-me de Óscar Lopes que também me disse que abandonou a Igreja por causa do inferno. E a argumentação de Lídia Jorge é forte. Lembro que já o filósofo David Hume argumentou contra a existência do inferno: "É inaceitável um castigo eterno para ofensas limitadas de uma criatura frágil, e, ainda por cima, esse castigo não serve para nada, uma vez que se dá quando a peça está acabada, concluída." Sim, Lídia: e como se pode conviver com o dogmatismo, que impede a liberdade de pensar? É o filósofo M. Heidegger que tem razão: "A pergunta é a piedade do pensamento."
Tudo quanto existe está unido a Deus, numa união tão estreita que, se Deus se retirasse, tudo voltava ao nada. Mas a criatura é criatura e Deus é Deus.
2. Do pior do nosso tempo é que a maior parte das pessoas já não colocam as perguntas fundamentais, essenciais. E a pergunta final é sempre sobre Deus, fundamento último e sentido final de tudo. Porque há algo e não nada e para quê a minha vida? Qual o sentido último da história? A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos estando mortos e a pergunta é: foi tudo para nada?
Ninguém sabe se Deus existe ou não. Mas a palavra é essa: "saber" no sentido da ciência moderna. Nesse sentido, o crente não pode dizer: "Eu sei que há Deus, eu sei que há vida depois da morte." Ele não sabe. Crê, com razões. Mas o ateu também não pode dizer: "Eu sei que não há Deus, eu sei que na morte acaba tudo, que não há vida depois da morte." Ele também não sabe. Crê, com razões. E eu, que acredito em Deus e na vida eterna, até entendo as razões do não crente.
Ninguém pode gloriar-se, escreveu o filósofo Immanuel Kant, de saber que Deus existe e que haverá uma vida futura: se alguém o souber, "esse é o homem que há muito procuro, porque todo o saber é comunicável e eu poderia participar nele". Mas é sensato, faz sentido, acreditar em Deus, criador e fundamento de tudo quanto há e sentido, sentido último da existência: não caminhamos para o nada, mas para a plenitude da vida em Deus, o Deus da Vida. Prova maior de que o passo para a fé enquanto entrega confiada ao Mistério de Deus, num acto de confiança radical, é razoável está em que, face ao mundo, que é ambíguo - com sentido e sem sentido -, ambivalente - com beleza, generosidade e bondade sem fim e com horrores e crueldade de estarrecer -, ousando entregar-se a Deus, tudo aparece como mais razoável e com mais sentido, sentido oculto, mas que há-de revelar-se na sua plenitude. Que o acto de fé é razoável mostra-se no próprio acto de entregar-se confiadamente, nessa confiança de base, basic trust, como Erik Erikson teorizou.
Ninguém sabe se Deus existe ou não. Mas a palavra é essa: "saber" no sentido da ciência moderna. Nesse sentido, o crente não pode dizer: "Eu sei que há Deus, eu sei que há vida depois da morte." Ele não sabe. Crê, com razões.
3. Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século XX, teve aquela afirmação profética: o cristão de amanhã "será místico" ou já não será cristão, querendo com isso dizer que só poderá ser cristão quem fizer a experiência pessoal de Deus. A relação autêntica do crente com Deus é de liberdade, amor e libertação. Por isso, a fé, a mística, sem ética, é ilusória. O critério da fé e da mística autênticas tem que ver com a força e a energia para enfrentar a existência e transformá-la e contribuir para uma sociedade mais justa, fraterna, livre e digna.
O místico verdadeiro, aquele que fez a experiência pessoal de Deus, vive na paz, não numa paz passiva e resignada, mas numa serenidade activa. Como deixou escrito Santa Teresa de Ávila: "Nada te turbe. Nada te espante. Todo se pasa. Dios no se muda. La paciencia todo lo alcanza. Quien a Dios tiene nada le falta. Solo Dios basta." É aqui que entra a oração. Mas, quando se entendeu o essencial, já não se trata de pedir isto ou aquilo, por vezes mera quinquilharia ou até coisas apenas para satisfazer a vaidade e o orgulho. Trata-se de converter-se e de contemplar. Quem não gosta de estar junto da Fonte e do Amor?
Conta-se que havia um peixinho pequenino que perguntou a outro maior: "Onde é o oceano?" Mas o outro não sabia. Foram perguntar a um terceiro, que respondeu que já tinha ouvido falar nisso, mas também não sabia. Foi um peixe mais antigo que respondeu: "Nasceste no oceano, vives no oceano e perguntas onde é o oceano?" "É em Deus, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, pois somos da estirpe de Deus", foi São Paulo dizer a Atenas, e perguntamos onde está Deus?
O que corre na corrente? Claro que é a fonte. Mas a corrente não é a fonte. Deus é a Fonte. Tudo quanto existe está unido a Deus, numa união tão estreita que, se Deus se retirasse, tudo voltava ao nada. Mas a criatura é criatura e Deus é Deus. Nós somos a corrente e Deus é a Fonte. O cristão vive na consciência deste vínculo no mais quotidiano da sua existência, mas sabendo ao mesmo tempo que Deus não lhe retira a liberdade, a autonomia, a responsabilidade no mundo; pelo contrário, enquanto criador ex nihilo e ex amore (a partir do nada e por amor), ele é a sua raiz e fundamento. Assim, com o amor com que ama Deus o crente ama o próximo. Deus que é Abbá (disse Jesus: Pai querido, e também podemos dizer: querida Mãe) é a Fonte da fraternidade universal.
Anselmo Borges no Diário de Notícias