Anselmo Borges |
1 No discurso histórico no Collège des Bernardins, que já aqui tentei sintetizar nas suas linhas de força [20 de Abril], o presidente da França, Emmanuel Macron, quis mostrar a importância decisiva dos católicos na vida cultural, ética, caritativo-social, política, mas sublinhou o inesperado: a Igreja como guardiã e despertadora das perguntas últimas, das questões do homem enquanto pessoa, do sentido da vida. É claro que "uma Igreja que pretendesse desinteressar-se pelas questões temporais não iria até ao fim da sua vocação". Mas há a outra parte, a parte católica da França, aquela "que no horizonte secular instila seja como for a questão intranquila da salvação, que cada um, acredite ou não, interpretará à sua maneira, mas em relação à qual cada um pressente que põe em jogo a sua vida toda, o sentido desta vida, o alcance que se lhe dá e a pegada que deixará. É verdade que o horizonte da salvação desapareceu totalmente do quotidiano das sociedades, mas é um erro e vê-se através de muitos sinais que continua aí, enterrado. Cada um tem o seu modo de nomeá-lo, de transformá-lo, de levá-lo consigo, mas é sempre a questão do sentido e do absoluto nas nossas sociedades que a incerteza da salvação traz a todas as vidas, mesmo as mais resolutamente materiais". Há um dom que a Igreja deve dar à República: "O dom da liberdade espiritual." "Porque não somos feitos para um mundo que seria atravessado apenas por finalidades materialistas. Os nossos contemporâneos têm necessidade, tenham fé ou não, de ouvir falar de uma outra perspectiva sobre o homem que não a material. Têm necessidade de matar uma outra sede, que é uma sede de absoluto. Não se trata aqui de conversão mas de uma voz que, com outras, ousa ainda falar do homem como um ser vivo dotado de espírito. Que ousa falar de outra coisa que não o temporal, mas sem abdicar da razão nem do real."
E Macron citou o seu mestre, o célebre filósofo Paul Ricoeur, em Amiens, em 1967: "Manter uma finalidade longínqua para os homens, chamemos-lhe um ideal, num sentido moral, e uma esperança, num sentido religioso"; é preciso "superar a prospectiva sem perspectiva": "visar mais, pedir mais. É isso o esperar: esperar sempre mais do que o factível".
2 Ricoeur pertencia à Igreja reformada de França e combateu a favor da urgência do diálogo ecuménico entre as Igrejas cristãs. Em 1967, pronunciou um conjunto de conferências sobre a "Igreja confessante" e, quando se instalava já um novo tipo de sociedade, a sociedade opulenta, completamente mergulhada no consumo massivo, desenvolveu profeticamente ideias de rara actualidade - noto que só foram publicadas em 2016, na obra Plaidoyer pour l"utopie ecclésial: "Pode-se dizer que a civilização inventou um sistema de desejos, e de desejo sem fim, que se parece com o que, noutro tempo, nos mitos gregos, era representado por lendas como a do tonel das danaides" - lembro que as danaides tinham sido castigadas a uma tarefa impossível: encher um tonel todo esburacado; o castigo reflecte precisamente a eterna insatisfação de quem se vê na necessidade de consumir sempre, sempre mais -; "isto aparece como uma espécie de castigo, de destino infernal, desejar sempre outra coisa. Mas esta é precisamente a sorte da nossa civilização: à medida que os níveis de vida aumentam, é preciso investir em novos objectos, depois desejar novos objectos, etc.", "numa sociedade sempre insatisfeita". Aliás, está aí a publicidade a acirrar sempre o desejo, criando artificialmente a necessidade: "As pessoas endividam-se e ao mesmo tempo fazem rolar a roleta económica, o que nos leva a uma espécie de escravidão da cobiça. A nossa sociedade assenta na escravidão da cobiça."
"Direi aqui o que me parece ser a função insubstituível de uma comunidade confessante num tipo de sociedade como a nossa, uma sociedade da previsão, da decisão racional, sociedade também da invasão técnica no consumo, no ócio e em todos os níveis da vida quotidiana. Parece-me que a razão de ser da Igreja é a de suscitar, em permanência, a questão dos fins, da "perspectiva" numa sociedade da "prospectiva". Em que consiste o bem-estar? O que é que se deve fazer?" Ricoeur, diria eu, estava a lutar por uma Igreja multinacional do sentido.
3 Neste contexto, o grande sociólogo da religião Javier Elzo chama a atenção para o facto de 50 anos depois das reflexões de Ricoeur os bispos franceses terem publicado reflexões semelhantes num documento com o título Dans un monde qui change, retrouver le sens du politique, publicado em 2016, e com honras de primeira página, a cinco colunas, no Le Monde, algo impensável em Portugal. Aí, podemos ler sob a epígrafe "A questão do sentido":
"Desde há 50 anos, a questão do sentido abandonou gradualmente o debate político. A política tornou-se gestão, em maior medida provedor e protector dos cada vez mais amplos direitos individuais e pessoais do que dos projectos colectivos. Discursos de gestão que acompanharam o progresso, o crescimento, o desenvolvimento do nosso país, mas sem preocupar-se com o para quê. A riqueza económica e a sociedade do consumo facilitaram este distanciamento da questão do sentido. (...) Um ideal de consumo, de lucro, de produtividade, de produto interno bruto, de comércio aberto todos os dias da semana, não pode satisfazer as aspirações mais profundas do ser humano, que há-de realizar-se como pessoa no seio de uma comunidade solidária."
4 Num tempo em que a política anda empacotada em mentiras e cinismo e uma onda de corrupção grassa e apodrece tudo, quando a razão dos meios para outros meios, a razão científico-técnica, instrumental, do ter, do poder e do prazer, não deixa espaço para a razão valorativa, é urgente fazer apelo às finalidades humanas, às razões da pessoa, da esperança, do ser e do sentido.
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico