Reflexão de Georgino Rocha
O grupo de Jesus vive uma crise profunda, depois do encontro de Cesareia de Filipe. Nem era para menos. Estava em jogo, após a avaliação da primeira fase da vida pública, o sonho de grandeza dos discípulos e o contraste que representa a resposta dada a Pedro, resposta contundente. “Fica longe de mim, satanás! Não pensas nas coisas de Deus, mas nas coisas dos homens”. E Pedro havia acertado em cheio: “Tu és o Messias”, exclama num misto de ousadia e assombro. Tinha razões para ficar satisfeito. A pergunta do Mestre: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” era bem respondida. Mas ouve o que não esperava: O anúncio surpreendente que deixa desconcertados os discípulos acompanhantes. A realização da missão vai passar por sofrer muito, ser rejeitado, morto em Jerusalém e ressuscitar. Pedro, porta-voz do grupo, é apanhado “em contra-mão” e reage de imediato. Chama Jesus à-parte e repreende-O. E este, atira-lhe a doer.
A crise estava instalada. O desencontro de perspectivas era notório, apesar de conviverem há tempos. Não estava em causa ser Messias, o Salvador, mas o modo de realizar a missão. Modo que ainda hoje se mantém. Em cada um de nós, na família, na Igreja, na sociedade. Como realizar a missão que Deus nos confia? Com que critérios?
“Seis dias depois”, informa Marcos, o narrador do relato. O tempo cronológico indica a intensidade psicológica e espiritual da experiência vivida. Tempo suficiente para a crise ser digerida. Tempo que termina com um acontecimento excepcional, a Transfiguração, de que fala o evangelho de hoje (Mc 9, 2, 1-10). Jesus resolve antecipar um vislumbre da sua Ressurreição. Toma consigo Pedro, Tiago e João. Sobe à montanha, o Tabor. Transfigura-se. Faz brilhar as suas vestes com brancura inigualável. Conversa com Elias e Moisés que, entretanto, lhe aparecem. É identificado por uma voz que se faz ouvir com autoridade: “Este é o Meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!”.
Os três apóstolos vivem e expressam esta experiência com intensidades várias que aparecem nas atitudes de Pedro, o rosto do grupo: Obedecem e sobam ao monte sem qualquer dissonância. Vêem o que acontece. Sentem-se bem, apesar do medo. Entram na nuvem que os envolve. Escutam a voz. Olham em redor e deparam-se apenas com Jesus a quem é preciso ouvir/seguir. O caminho para Jerusalém é confirmado por Deus Pai. A paixão por amor será o certificado. Nas aldeias e cidades. Em encontros de rua e refeições de amigos e convidados. Em gestos de cura e recomendações de melhoria de vida. Perante Anás e Caifás, perante Herodes e Pilatos, as autoridades religiosas e políticas. No horizonte, sempre presente, está a garantia de que, por amor de doação, tudo se enfrenta e supera. E a certeza definitiva surge vitoriosa na manhã da Ressurreição.
O percurso geográfico constitui um símbolo da peregrinação interior do grupo apostólico e de quem pretender, a sério, ser discípulo de Jesus. Não nos aconteça como a Pedro. Seriamos cristãos mundanos, com olhos postos em comodidades egoístas e vistosas, prontos a fazer arranjos de conveniência, volúveis conforme as circunstâncias e a trocar a afirmação da verdade pela mentira reincidente, bem ilustrada no episódio da negação no pretório de Pilatos. O caminho fica bem indicado: Escutar Jesus e seguí-Lo.
Tendo como referência o percurso dos discípulos, podemos apresentar alguns traços do nosso caminho espiritual. Escutar sempre Jesus, mas sobretudo quando temos o nosso espírito nublado pelas dúvidas e incertezas, pelas vozes gritantes na arena pública e pelos silêncios roedores das redes sociais, pelos impulsos decorrentes da natureza descontrolada e pelos sonhos cruzados da fantasia libertina. Ele é luz, paz, verdade.
Escutar Jesus, reconhecendo que a razão humana apesar das suas aspirações legítimas, tem limites e pára às portas do mistério que revela outros horizontes da vida. Os discípulos discutiam o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”. Esta discussão estará sempre em aberto. Jesus, porém, indica-nos o caminho para a resposta certa. Indica, percorre e faz, deixando a “porta” franqueada.
Escutar Jesus, valorizando a consciência humana de toda a pessoa, independentemente da condição social ou étnica, e ajudando-a a limpar de toda a interferência indevida para ser livre na sua opção pela verdade do ser e do agir. Assim a dignidade natural de cada um/a brilhará na sinfonia das criaturas e do universo. A melodia da cruz far-se-á ouvir de novo na confiança filial: “Tudo está consumado!”.
As monjas de São Bento de Montserrat fazem um bom resumo da mensagem do Evangelho da Transfiguração no seu PowerPoint desta semana. Eis alguns pontos da sua reflexão. Com fé, podemos ver Jesus transfigurado em cada pessoa. A luz é sempre mais forte do que as nossas obscuridades. Transfigurar-nos é viver o Evangelho e ter olhos de profeta. Só viveremos a Transfiguração, se aprendermos a levar uma vida transformada: da indiferença à solidariedade e da amargura à alegria. Ver Jesus transfigurado é preparar o escândalo de o ver desfigurado na cruz. A nossa missão é reconfigurá-lo em cada rosto humano. É abraçar a paixão do amor como resposta à sua doação incondicional por nós. Experimenta. Vale a pena.