Anselmo Borges
Por formação e princípio, gosto do que é claro e transparente, detesto a mentira, a astúcia do engano, a manha... E aí está a razão deste texto. De facto, não consigo entender muito bem a pressa com que a actual Assembleia da República se apressa em legislar sobre as chamadas questões fracturantes.
1. Entre as primeiras medidas, acabou-se com a taxa moderadora no aborto, o que é incompreensível e injusto, pensando nas mulheres doentes que pagam. E estou à vontade, pois, na altura, escrevi um texto, usado e abusado, favorável à descriminalização, tendo o governo de então garantido que se seguiriam as "boas práticas" de outras legislações, concretamente da alemã. Depois, foi o que se vê...
2. Foi aprovada a lei que permite a gestação de substituição, vulgarmente conhecida por barrigas de aluguer. Em casos excepcionais (irmãs, por exemplo), até poderia dar o meu acordo, mas há perguntas inevitáveis: pensou-se a sério nas questões graves que podem surgir, por exemplo, no que se refere ao "turismo" estrangeiro, incluindo interesses financeiros neste domínio? Seja como for, há um contrato, e isso é humanizante? Quem deve ocupar o centro: a mulher ou a criança? E se, por doença, ninguém quer a criança? Está garantida o direito à identidade genética? Tanto se lutou para pôr fim aos filhos de pai incógnito, mas agora até a mãe o é....
3. Aquele projecto de lei sobre a canábis para fins terapêuticos (já há quem queira também para outros fins), com a possibilidade de "auto-cultivo"!
4. E aí está a eutanásia. Repare-se, logo à partida, como exemplo cabal do capcioso: entrou na Assembleia da República um "projecto de lei sobre a despenalização da morte medicamente assistida". Ora, haverá alguém que, na medida do necessário e possível, não queira, mesmo se se é contra a legalização da eutanásia, uma morte medicamente assistida? Medicamente, moralmente, afectivamente, (talvez) religiosamente, assistida? Veja-se: no "projecto", não se fala em despenalização da eutanásia, mas da morte medicamente assistida, quando o que deveria ser penalizado seria precisamente uma morte não medicamente assistida.
Sobre a eutanásia escrevi longamente nos meus livros Corpo e Transcendência e Francisco: Desafios à Igreja e ao Mundo. Alguém interessado encontrará lá textos e posições de católicos e teólogos, que podem ser invocados na argumentação a favor da eutanásia em abstracto, desde a Utopia, de Thomas More, passando por H. M. Kuitert, Jean Guitton, A. Torres Queiruga, A. Monclùs, até Hans Küng, que recentemente, no contexto da defesa para si próprio do suicídio medicamente assistido, escreveu em Glücklich sterben (há tradução portuguesa): "O ser humano tem o direito de morrer quando não tem nenhuma esperança de continuar a levar o que, no seu entender, é uma existência humana."
Aqui, a argumentação tem de ser racional e não religiosa. De qualquer modo, mesmo do ponto de vista religioso, sei que, na perspectiva cristã, autonomia e teonomia coincidem, que Deus é misericórdia e não nos criou para sofrer, existe a autonomia e a vida é um bem, um direito, e não um fardo, que pode tornar-se insuportável. Mas o problema é outro. Trata-se de uma questão civilizacional, e é preciso estar bem consciente dos perigos dramáticos e temíveis que se corre. Por exemplo, com uma lei aberta à eutanásia e ao suicídio medicamente assistido (lembra um oxímoro), não surgirá depois uma pressão disfarçada e subtil sobre os doentes e os velhos, que acabará por ser interiorizada por eles, para que exerçam o direito à eutanásia "voluntária"? Não há aí o risco de enormes equívocos até na própria terminologia: "Morte por compaixão?" Precisamente porque é imisericordiosa, já que assenta no economicismo e no hedonismo, a nossa sociedade cada vez menos humanista, não tendo dinheiro nem tempo nem solidariedade compassiva para com os mais fracos - os doentes graves e os moribundos -, atira-os para o que chama a "morte misericordiosa", a "morte por compaixão"?
Sobretudo: com a legalização da eutanásia, teríamos uma mudança civilizacional. Porque o Estado ficaria com mais um encargo: dar a morte. Sejamos claros, porque a pergunta é mesmo esta: quem aplica a eutanásia, isto é, sem eufemismos, quem mata? Se o Estado reconhece o direito a pedir a eutanásia, não é sua obrigação satisfazê-lo? Com que consequências? Fez bem A. Maia Gonçalves, na sequência de outros médicos ilustres, como Miguel Oliveira da Silva, vir lembrar que "a eutanásia nunca será um acto médico. Pode ser entendida como um direito de cidadania e os médicos devem estar fora disso". Mas, então, quem satisfaria o dito "direito"?
Relembro que deve ser claro que é preciso opor-se à distanásia, isto é, à obsessão terapêutica e ao encarniçamento técnico. Chamo também à memória que na própria França se foi não para a eutanásia, mas para a sedação profunda e continuada.
Tratando-se de uma questão civilizacional, poderíamos/deveríamos ir para um referendo, mas, para lá da questão constitucional e da limitada votação, não estou a ver uma pergunta suficientemente clara que levasse à possibilidade de uma decisão esclarecida. Desafio, pois, os partidos. É claro que esta Assembleia tem legitimidade jurídica para decidir. Mas não vejo que tenha legitimidade moral, pois os partidos e o governo não ousaram colocar a questão nos seus programas. Tenham, pois, a coragem de esperar mais um pouco (2019) e colocar o tema nos programas para que haja um debate amplo, claro e esclarecedor. Neste domínio, temos de estar para lá de interesses meramente partidários, pois, repito, trata-se de uma questão civilizacional. E, por outro lado, neste domínio, não há vencedores nem vencidos. Porque será a morte que acabará por vencer a todos. É disso mesmo que se trata: uma questão de vida e de morte.