domingo, 26 de fevereiro de 2017

Fátima dá para tudo (2)

Crónica de Frei Bento Domingues 




O que atrai os peregrinos é o testemunho 
de algo fantástico reconhecido como sagrado

1. Em conversa com um amigo, a propósito da recente avalanche de escritos sobre Fátima, ele defendia que o mais sólido e resistente capital simbólico português do século XX-XXI nasceu de dois fenómenos quase simultâneos e completamente diferentes: o dos heterónimos de Fernando Pessoa e o dos pastorinhos da Cova da Iria. Um é poético e o outro é religioso. A figura mais emblemática e enigmática da Poesia, que goza de um crescente reconhecimento internacional, é Fernando Pessoa. A Religião que atrai milhões, com pretensões a “altar do mundo”, é Fátima. 
Essa observação talvez não seja apenas megalomania e nostalgia de um império perdido, mas é uma abordagem que excede os propósitos desta crónica. É verdade que tanto o referido fenómeno poético como o religioso surgiram na mesma época, mas o Desassossego de Fernando Pessoa - reconhecendo que “a vida é uma metafísica às escuras com um rumor de deuses e o desconhecimento da rota como a única via” - nunca tomou o caminho de Fátima e a religião de Fátima nunca se encontrou com a grande Poesia nem com o questionamento metafísico [1]. 
Seria, no entanto, muito precipitado concluir que o fundo da experiência religiosa seja incompatível com a ciência, a filosofia e a arte. Sobre essa problemática, Einstein pronunciou-se de um modo que merece atenção: 
“A mais bela e profunda experiência que o ser humano pode ter é o sentido do misterioso. É o princípio básico da religião, como de todo o empreendimento sério em arte e ciência. Quem nunca teve esta experiência parece-me, senão morto, pelo menos cego. Sentir que por trás do que pode ser experienciado há algo que a nossa mente não pode atingir e cuja beleza e carácter sublime só indirectamente nos chega como um fraco reflexo, isso é religiosidade. Neste sentido, sou religioso. Para mim, basta pensar nestes segredos e humildemente tentar captar com a minha mente uma mera imagem da estrutura soberba de tudo o que existe [2].” Algo semelhante foi destacado por L. Wittgenstein: “O inexprimível - o que eu considero misterioso e não sou capaz de exprimir - talvez seja o pano de fundo a partir do qual recebe sentido seja o que for que eu possa exprimir [3]”. 
Com O Livro do Desassossego, Fernando Pessoa desassossega as crenças, a teologia, o ateísmo, o cepticismo e o niilismo. Abala todas as aparentes certezas. Só quando percebermos que não nos entendemos a nós próprios, não entendemos os outros, não entendemos o universo, não entendemos Deus, poderemos começar a ser religiosos, isto é, pessoas atentas ao mistério de tudo. O ser humano é precisamente aquele que sabe que não sabe. Vive na finitude do mundo e na nossa imperfeição. 

2. Não é credível que as primeiras “aparições” de Fátima tenham sido encomendadas aos pastorinhos nem que o seu desenrolar, durante um século, estivesse predeterminado no céu e na terra. É normal que as exigências do método histórico vão detectando o carácter construído daquilo que foi apresentado como ditado de Nª Senhora. 
A própria Lúcia confessa que foi o Padre Faustino “quem nos ensinou a guardar o nosso segredo”, assim “como o modo de dar gosto a Nosso Senhor em tudo e, a maneira de lhe oferecer um sem-número de pequenos sacrifícios: se vos apetecer comer uma coisa, meus filhinhos, deixai-a e, em seu lugar, comei outra e oferecei a Deus esse sacrifício, se vos apetecer brincar, não brincai e oferecei a Deus esse sacrifício [4].” O cónego Formigão e outros não conseguiram esconder a sua mão na configuração das metamorfoses das narrativas ao longo do tempo, servidas por uma grande capacidade adaptativa da Irmã Lúcia, testemunhada nas suas Memórias e nas suas Cartas [5]. 
A preocupação pela historicidade das chamadas Aparições de Fátima é legítima para distinguir a eclosão do próprio fenómeno religioso dos posteriores desenvolvimentos controlados por eclesiásticos, desde Aljustrel até Tuy [6]. O que os pastorinhos disseram e as circunstâncias das suas narrativas podem ser estudadas. A credibilidade humana de todas essas declarações é assunto de investigação. É normal que surjam interpretações diferentes. O que nenhum católico está obrigado a acreditar é no carácter sobrenatural dessas manifestações marianas, as chamadas mariofanias. As declarações eclesiásticas de que o fenómeno de Fátima é digno de crédito, não podem ser acrescentadas ao Credo. São de outra ordem. 
Poderá então perguntar-se: tantos milhões que vão a Fátima andaram enganados? 

3. A sedução de um fenómeno religioso não se mede pela sua historicidade. Não é a impossível verificação empírica do sobrenatural que está na origem dos grandes centros de peregrinação. O que atrai os peregrinos é o testemunho de algo fantástico reconhecido como sagrado. Santiago de Compostela foi e continua, desde a Idade Média até aos nossos dias, uma das maiores peregrinações do Ocidente. Os restos mortais de Santiago viajaram da Terra Santa até Compostela, num barco de pedra guiado por anjos! 
António Marujo e Rui Paulo da Cruz publicaram uma obra, A Senhora de Maio. Todas as perguntas sobre Fátima [7]. 
Pode ser que ainda falte alguma, mas a sua música dissonante, a várias vozes, dá muito que pensar, como veremos. 


[1] Já abordei as relações de Fernando Pessoa com Fátima em Bento Domingues, A Religião dos Portugueses, 
Figueirinhas Porto 
Lisboa, 1988 
[2] Cit. por Len Port, Fátima – milagre, ilusão ou fraude? Guerra e Paz, Lisboa, 1917 
[3] Cultura e Valor, Ed.70, Lisboa 1976 
[4] Cf. Aurélio Lopes, Videntes e Confidentes, Cosmos, 2009, pp.231-232
[5] P. António Maria Martins, S.J., Novos documentos de Fátima, Livraria AI, Porto, 1984
[6] O próprio Santuário se encarregou de publicar a DOCUMENTAÇÃO crítica de Fátima, em vários volumes. Existe uma Enciclopédia de Fátima, Coord. Carlos Azevedo/Luciano Cristino, Principia, 2007 e vai crescendo sempre o número das obras sobre Fátima.
[7] Temas e Debates – Círculo de Leitores, Fev. 2017

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