sábado, 30 de julho de 2016

As obras de misericórdia (2)

Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias

Consolar os tristes
No "Ano da Misericórdia", aí estão, com Xabier Pikaza, as obras de misericórdia. São catorze: sete corporais e sete espirituais. Vinculam a justiça e o coração: a misericórdia não pode esquecer a justiça, mas a justiça tem de ser mobilizada pela misericórdia. Para sermos humanos.

Obras de misericórdia corporais

1 "Dar de comer a quem tem fome". Há certamente muitas outras necessidades: afecto, cultura, carinho, palavra... Mas a maior e mais urgente é a comida. Nem só de pão vive o homem, mas sem pão não vive. É uma vergonha haver comida suficiente para todos e morrerem de fome todos os dias 40 mil pessoas (16 mil crianças). Há várias, mas duas são "as causas principais" da fome: o egoísmo de indivíduos e de grupos e a injustiça do sistema dominante.

2 "Dar de beber a quem tem sede". Sem água não há vida. Jesus disse: "Quem vos der de beber um copo de água não ficará sem recompensa." Multiplicar-se-ão os conflitos por causa da falta de água. O Papa Francisco chamou a atenção para isso na encíclica "Laudato sí", sobre a ecologia.

3 "Vestir os nus". "Os nus carecem de protecção pessoal, estão indefesos, desarmados, e à mercê da violência alheia." A roupa cobre, protege e dignifica. A nudez acaba por significar abandono e exclusão, e, sobretudo no caso das mulheres e das crianças, exploração e tráfico sexual.

4 "Dar pousada aos peregrinos". No Evangelho segundo São Mateus, são referidos concretamente os estrangeiros, aplicando-se o termo grego "xenoi" concretamente a homens e mulheres que formam parte de um grupo social e cultural diferente: "Fui estrangeiro e acolhestes-me ou não me acolhestes", dirá Jesus no juízo definitivo. "A pátria do cristão é o diálogo e o acolhimento."

5 "Assistir aos enfermos". Visitá-los, cuidar deles. Se, no Evangelho, há preocupação constante da parte de Jesus é pela saúde das pessoas, de quem cuida e que cura.

6 "Visitar os presos". Não se trata simplesmente de visitar. Trata-se de "oferecer-lhes assistência e cura, porque estão em necessidade (sejam culpados ou não) e porque podem curar-se".

7 "Enterrar os mortos". Miséria suprema: morrer e não haver ninguém a reclamar os mortos. Mas se isso acontece na morte, já na vida viveram abandonados. Esta obra de misericórdia realiza-se verdadeiramente não só na sepultura do cadáver, mas na exigência de acompanhar e ajudar na velhice, de modo eficaz, com dignidade.


Obras de misericórdia espirituais

1 "Dar bom conselho". Uma tarefa de todos e para todos, mas de modo especial para os educadores, professores, conselheiros da consciência.

2 "Ensinar os ignorantes". Jesus foi um "mestre de sabedoria, que ensinou o povo simples, mal guiado por escribas ao serviço do poder religioso". Abriu os olhos das pessoas, para que pudessem descobrir o mistério de Deus e o seu amor para com todos, numa Escola de verdadeira Humanidade. O seu ensinamento não se dirigia à conquista do poder, mas ao serviço da sabedoria autêntica da vida plena.

3 "Corrigir os que erram". Os profetas bíblicos sabiam disto e, por isso, denunciaram e exigiram capacidade de mudança, não apenas na linha da interioridade, mas também no nível da transformação social. Sem conversão pessoal, não há justiça que baste.

4 "Consolar os tristes". Quem não precisa de consolação, em tempos de tanto desconsolo? Precisamos de quem seja fonte de paz para os outros, "para superar assim a depressão e a tristeza que vai crescendo como pandemia imparável numa Terra onde, ao lado de uma grande prosperidade, se estende a intransigência de alguns e a pobreza e desamparo de centenas de milhões de pessoas". Desamparo material e desamparo espiritual.

5 "Perdoar as injúrias". "Não se trata de perdoar, de um modo resignado, aguentando as injúrias, mas de converter o perdão em fonte de transformação pessoal e social. Quem perdoa não é cobarde, um ser passivo, incapaz de enfrentar o mal; pelo contrário, é alguém que vence o mal com o bem", confiando, portanto, na conversão de quem ofende.

6 "Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo". Aqui, está-se numa perspectiva diferente da da anterior: já não se trata de perdoar aos inimigos, mas de suportar os defeitos daqueles com quem partilhamos o caminho: familiares, amigos, colegas. Há limites para o intolerável, mas é fundamental perceber que é preciso ter paciência com as diferenças e defeitos dos outros: "os puristas radicais destroem não só famílias, mas comunidades religiosas, igrejas" e grupos.

7 "Rogar a Deus pelos vivos e defuntos". Não se trata de espiritualismo perante o fracasso da vida, mas de comunhão profunda com todos no mistério da vida plena em Deus.

São também obras de misericórdia: proteger as mulheres, acolher/educar as crianças, perdoar as dívidas, libertar os escravos, partilhar os bens.
 
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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