Crónica de Anselmo Borges
no DN
Anselmo Borges |
1. Claro que é muito antiga, mas a questão da comunhão para os divorciados que voltaram a casar-se tornou-se agora acesa, por causa da nova atitude que o Papa Francisco quer para esta situação. Já em Julho de 2013, quando regressava das Jornadas Mundiais da Juventude no Rio de Janeiro, disse no avião, em conversa com os jornalistas, que era necessário rever "o problema da comunhão para as pessoas que voltaram a casar-se", e pensava na misericórdia: "Se o Senhor não se cansa de perdoar, nós não temos outra escolha."
Rapidamente se ergueram as vozes de figuras altamente situadas, opondo-se à abertura. A oposição tem sido liderada por cinco cardeais: "Não é coerente com a vontade de Deus" (Gerhard L. Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé), vai "contra a vontade do Senhor" (Carlo Caffarra), é ilícita, porque põe em causa "a lei divina" da "indissolubilidade do casamento" (Velasio De Paolis), é "insustentável" (Walter Brandmüller), o recurso à misericórdia sem verdade atenta contra a fé (Raymond Leo Burke). É sobretudo Burke que está à frente da chamada "Filial súplica a Sua Santidade para o futuro da família", que já tem meio milhão de assinaturas, também de bispos e cardeais, na qual se pede ao "Papa Francisco que reafirme categoricamente o ensinamento da Igreja de que os católicos divorciados e que voltam a casar-se civilmente não podem receber a Sagrada Comunhão e que as uniões homossexuais são contrárias à lei divina e à lei natural". São agora 17 os cardeais que se opõem à abertura da comunhão aos recasados, com a publicação de dois livros, em várias línguas, para pressionar o Sínodo de Outubro: "Onze cardeais falam sobre o casamento e a família" e "África, nova pátria de Cristo. Contributos de pastores africanos para o Sínodo".
2. Neste contexto, Francisco veio relembrar que os divorciados recasados "não estão excomungados e não devem ser tratados como se estivessem. Formam sempre parte da Igreja". E pedia que nunca as portas da Igreja estejam fechadas, porque "todos podemos participar" na vida da comunidade. Certamente, "a Igreja sabe que estas situações contradizem o sacramento cristão", mas, acrescentou, "além de ser mestra, a Igreja tem um coração de mãe, que procura sempre o bem e a salvação de todos, sem excluir ninguém". Animou os fiéis a "olhar a situação com os olhos dos filhos pequenos" e que então "veremos a urgência de um acolhimento real das pessoas que vivem estas situações. É importante que o estilo da comunidade e a sua linguagem estejam sempre atentos à pessoa, a partir dos filhos, que são os que mais sofrem". No quadro de uma comunidade aberta, é preciso fazer tudo para "educar os filhos na vida cristã, dando testemunho de uma fé vivida e praticada, sem os ter distanciados da vida da comunidade". Aliás, "o número destas crianças é muito grande. É importante que sintam a Igreja como mãe atenta a todos, sempre disposta à escuta e ao encontro." Aqui, digo eu: já se pensou no trauma das crianças que, no dia da primeira comunhão, ouvem os pais dizer que não podem comungar porque a Igreja não permite? O Vaticano não desmentiu a notícia de que Francisco disse a uma mãe argentina nestas circunstâncias que podia comungar. Aliás, embora a palavra excomunhão tenha o sentido técnico de exclusão da comunidade, supondo, portanto, uma sanção mais dura, não implica o impedimento da comunhão na missa uma real excomunhão, contradizendo o que Francisco disse: "Os recasados não estão excomungados?"
3. Ao contrário do que frequentemente se ouve, o anterior Sínodo não conseguiu os dois terços exigidos, mas votou por maioria a admissão à comunhão. Por isso, o chamado Instrumentum Laboris, uma espécie de esquema geral para os debates do Sínodo em Outubro, a partir das respostas das diferentes Conferências Episcopais e entidades católicas de todo o mundo, constata um "consenso" à volta da questão da comunhão para os divorciados recasados, no sentido de acabar com as exclusões: "De muitas partes chega o pedido de que a atenção e o acompanhamento dos divorciados recasados civilmente se orientem para uma cada vez maior integração na vida da comunidade cristã, tendo em conta o ponto de partida da diversidade de situações. Embora mantendo-se firme a doutrina da Igreja, devem ser repensadas as formas de exclusão actualmente praticadas no campo litúrgico-pastoral, educativo e caritativo. Uma vez que estes fiéis não estão fora da Igreja, propõe-se reflectir sobre a oportunidade de deixar cair estas exclusões. Além disso, sempre para favorecer uma integração maior na comunidade cristã e, dado o papel insubstituível dos pais, é necessária uma atenção específica aos filhos por causa do interesse preeminente dos menores."
4. O Evangelho é exigente, muito exigente? Quem dirá o contrário? Mas, sem dúvida alguma, o seu fio condutor é a compreensão, o perdão, a misericórdia. Francisco tem razão: o Evangelho é misericórdia.