Reflexão de Georgino Rocha
“Fomos e regressámos da lua,
mas temos enorme dificuldade
em atravessar a rua para visitar o vizinho”
O episódio do surdo-mudo ocorre na região da Decápole, situada além Jordão, território independente, habitada por gente pagã. A missão para Jesus não tem fronteiras nem faz discriminações, não se limita a confirmar o que há de bom no homem, mas visa iniciar uma nova criação.
Marcos – o evangelista narrador – condensa, neste episódio, uma expressiva mensagem, valiosa para todos os tempos, mas sobretudo para os nossos, tão profundamente marcados pela surdez e incomunicação generalizadas, na era em que torrentes de informação circulam sem limites de qualquer espécie. Mc 7, 31-37.
O surdo-mudo, como pessoa real, é um símbolo humano, representante silencioso e eloquente de uma realidade bloqueadora das capacidades relacionais. Vive isolado no seu mundo fechado, apesar da multidão que, deambulando nos caminhos da vida, passa por ele e o vê, está incapacitado de sair da sua situação, é pagão e vive num território estrangeiro. Símbolo pessoal e colectivo de uma sociedade com tremendos contrastes: edifícios altos e casas fechadas; multidões de migrantes sujeitos à intempérie e minorias de elites superprotegidas, auto-estradas amplas e estreiteza de horizontes; mais dinheiro em circulação e menos posses; casas maiores e famílias mais reduzidas; mais coisas ao dispor e menos tempo para desfrutar do seu bom uso; mais dados de informação e instrução e menos sentido e sabedoria da vida; mais medicamentos e menos saúde e bem-estar. A humanidade naufraga, arrolando a sua dignidade em qualquer costa para aonde os ventos e as marés de interesses sórdidos a empurram e abandonam aos abutres de turno.
“Fomos e regressámos da lua, mas temos enorme dificuldade em atravessar a rua para visitar o vizinho”. Conquistámos o espaço exterior, mas esvaziámos o interior. Fabricámos mais material electrónico e guardamos enormes quantidades de informação, mas comunicamo-nos menos, vivemos ensimesmados. Estamos à distância de um clique e a milhares de léguas de proximidade afectiva e compreensiva. Sentimos a necessidade compulsiva de viver os impulsos da conexão (estar conectados) e somos frequentemente insensíveis aos apelos da consciência ferida pela voz de familiares esquecidos. Estes contrastes são apenas flashes de uma imagem da “multidão solitária” que predomina e cresce na era das comunicações.
Jesus acolhe o surdo-mudo que lhe apresentam. Há sempre alguém, felizmente, que se deixa condoer e põe “mãos à obra”. Retira-se com ele e, por meio de gestos normais e familiares para os destinatários do evangelho de Marcos, que viviam no meio da cultura helénica, realiza a cura, abrindo os ouvidos e soltando os entraves da língua. “Efatá!”, abre-te a uma nova realidade, vê quem te rodeia e contigo quer caminhar, ouve o falar das pessoas, admira o cantar das aves e a beleza dos céus, sonha para além das aparências, entra no mundo novo. Em ti começou germinalmente a nova criação que será consumada na cruz florida da ressurreição.
Efatá! É exortação e apelo, palavra de ordem e missão, grito de confiança e gesto de bem-fazer. É sobretudo sinal eficaz de que Deus não desiste do seu projecto sanador das feridas humanas a fim de que, libertos de forças atrofiadores e desvirtuantes, brilhe em nós com nova intensidade a saúde integral a que estamos chamados.