Ascêncio de Freitas |
No passado dia 23 de agosto, faleceu na Amadora, onde residia, o escritor gafanhão Ascêncio de Freitas. Natural da Gafanha da Nazaré, viu a luz do dia no Forte da Barra em 3 de agosto de 1926, tendo concluído, recentemente, 89 anos de vida.
Em 1949, fixou-se em Moçambique, onde viveu três décadas, sem nunca esquecer as suas raízes. Nos seus livros, de vez em quando, deixava transparecer ou evocava com nitidez marcas indeléveis das suas origens. Na sua obra, sobretudo contos e romances, Ascêncio de Freitas apoia-se, com riqueza de pormenores, fundamentalmente, em vivências moçambicanas, o que lhe deu legítimo direito a integrar antologias daquele país irmão.
Em Portugal, o escritor gafanhão foi galardoado, com merecido reconhecimento, pela sua obra, de que destacamos “Cães da Mesma Ninhada” (Prémio Cidade da Beira “A Reconquista de Olivença” (Prémio Vergílio Ferreira), “O Canto da Sangardata” (Prémio Pen Clube),”A Noite dos Caranguejos” (Prémio Ferreira de Castro) e “A Paz Enfurecida” (Escrito com Bolsa do IPLB — Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, obtida por concurso).
Ascêncio de Freitas, que nunca olvidou a sua terra, vinha com alguma frequência à Gafanha da Nazaré, onde colaborou com amigos e instituições. Por isso, a ADIG (Associação para a Defesa dos Interesses da Gafanha da Nazaré) prestou-lhe significativa homenagem em 8 de julho, tal como fez a Câmara Municipal da Amadora pouco tempo antes do seu falecimento.
Em sua memória, publicamos um expressivo texto do seu livro “Ai, Amor!”, cuja primeira edição saiu em janeiro de 2009.
«O capitão
Armando Vieira, do mesmo modo familiar com que o tinha recebido pela primeira
vez logo após a chegada, fez entrar o amigo da juventude pela porta da cozinha,
com as manifestações de alegria de quem acolhia em sua casa alguém que tivesse
acabado de regressar, ileso, de uma batalha perdida
e a cozinha
estava inundada de um odor forte, saído de algo que estava a cozinhar, que fez
recordar ao tio Florêncio a caldeirada de bacalhau
não obstante
ele pensou que não poderia adivinhar de forma tão simples e imediata que seria
esse “o jantar gafanhão” que lhe tinha sido prometido, pois a caldeirada não poderia
nunca ser considerada um prato gafanhão, nem tão-pouco apenas português
— Estás a lembrar-te de alguma coisa
conhecida neste cheirinho que está aqui na cozinha, não estás, sócio?
mas eu aposto singelo contra dobrado em
como não adivinhas o que a Adélia tem ali a cozinhar
— Guiado pelo cheiro, eu apostaria que
se trata de caldeirada de bacalhau
mas ao mesmo tempo qualquer coisa me
diz que perderia a aposta, porque este aroma que anda no ar não é exactamente
igual ao da caldeirada
perderia… seguramente
porque depois de teres prometido um jantar
gafanhão, seria falta de imaginação apresentares-me para comer uma banal
caldeirada de bacalhau
embora
seja coisa que não como há muitíssimo tempo
só que ninguém poderá dizer que se
trata de um prato gafanhão
os bascos e os galegos também a fazem
— Deixa-te de divagações e vem dar uma
espreitadela
disse o
capitão Armando Vieira
aproximou-se
do fogão, retirou a tampa do tacho e uma intensa nuvem de vapor subiu no ar
depois de a
deixar dissipar, o capitão Vieira fechou os olhos e aproximou o rosto do
recipiente, de onde saía, junto com a branda fumarada, o som de um suave
borbulhar
— Oh,
assim estragas a surpresa, Armando
protestou Adélia
mas ele
aspirava o vapor que saía do tacho e comentava:
— Hum, este cheiro a salgado entra-me no
nariz e trepa-me até à alma
vem cheirar, vem cheirar este perfume
que nos lembra o mar e é como se fossem as mãos dos anjos a acariciar o que há
de melhor dentro de nós
ah, e como formosa nos parece a vida
saboreando estes petiscos
melhor do que isto só lagosta suada ou bacalhau á Freitas
o tio
Florêncio aproximou-se dele e espreitou para dentro do tacho
aspirou também
o cheiro da comida
— Então que tal?
— Não estou a ver o que possa ser
cheira a bacalhau… mas ao mesmo tempo
há qualquer coisa de diferente neste cheiro
— São sames, sócio, são sames, que já
não deves comer há muito tempo
— Sames?
caramba, há mais de trinta anos que não
me lembrava sequer dessa estranha palavra, quanto mais comê-los
— Sim senhor, um guisadinho de sames de
bacalhau, bem à gafanhoa
é ou não é?»
Excerto do capítulo
oitavo
do romance “Ai, Amor”
NOTA: Só hoje me foi possível escrever este texto de homenagem a um escritor gafanhão que admirava pela originalidade da sua escrita cheia de memórias, algumas das quais referentes à nossa terra e nossas gentes. Longe da casa, não tinha à mão o texto com o qual desejava prestar-lhe a minha gratidão.
F.M.