sábado, 5 de setembro de 2015

Faleceu o escritor gafanhão Ascêncio de Freitas

Ascêncio de Freitas
No passado dia 23 de agosto, faleceu na Amadora, onde residia, o escritor gafanhão Ascêncio de Freitas.  Natural da Gafanha da Nazaré, viu a luz do dia no Forte da Barra em 3 de agosto de 1926, tendo concluído,  recentemente, 89 anos de vida.
Em 1949, fixou-se em Moçambique, onde viveu três décadas, sem nunca esquecer as suas raízes. Nos seus livros, de vez em quando, deixava transparecer ou evocava com nitidez marcas indeléveis das suas origens. Na sua obra, sobretudo contos e romances, Ascêncio de Freitas apoia-se, com riqueza de pormenores, fundamentalmente, em vivências moçambicanas, o que lhe deu legítimo direito a integrar antologias daquele país irmão. 
Em Portugal, o escritor gafanhão foi galardoado, com merecido  reconhecimento, pela sua obra, de que destacamos “Cães da Mesma Ninhada” (Prémio Cidade da Beira “A Reconquista de Olivença” (Prémio Vergílio Ferreira), “O Canto da Sangardata” (Prémio Pen Clube),”A Noite dos Caranguejos” (Prémio Ferreira de Castro) e “A Paz Enfurecida” (Escrito com Bolsa do IPLB — Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, obtida por concurso).
Ascêncio de Freitas, que nunca olvidou a sua terra, vinha com alguma frequência à Gafanha da Nazaré, onde colaborou com amigos e instituições. Por isso, a ADIG (Associação para a Defesa dos Interesses da Gafanha da Nazaré) prestou-lhe significativa homenagem em 8 de julho, tal como fez a Câmara Municipal da Amadora pouco tempo antes do seu falecimento.
Em sua memória, publicamos um expressivo  texto do seu livro “Ai, Amor!”, cuja primeira edição saiu em janeiro de 2009.


         «O capitão Armando Vieira, do mesmo modo familiar com que o tinha recebido pela primeira vez logo após a chegada, fez entrar o amigo da juventude pela porta da cozinha, com as manifestações de alegria de quem acolhia em sua casa alguém que tivesse acabado de regressar, ileso, de uma batalha perdida
         e a cozinha estava inundada de um odor forte, saído de algo que estava a cozinhar, que fez recordar ao tio Florêncio a caldeirada de bacalhau
         não obstante ele pensou que não poderia adivinhar de forma tão simples e imediata que seria esse “o jantar gafanhão” que lhe tinha sido prometido, pois a caldeirada não poderia nunca ser considerada um prato gafanhão, nem tão-pouco apenas português
         — Estás a lembrar-te de alguma coisa conhecida neste cheirinho que está aqui na cozinha, não estás, sócio?
         mas eu aposto singelo contra dobrado em como não adivinhas o que a Adélia tem ali a cozinhar
         — Guiado pelo cheiro, eu apostaria que se trata de caldeirada de bacalhau
         mas ao mesmo tempo qualquer coisa me diz que perderia a aposta, porque este aroma que anda no ar não é exactamente igual ao da caldeirada
         perderia… seguramente
          porque depois de teres prometido um jantar gafanhão, seria falta de imaginação apresentares-me para comer uma banal caldeirada de bacalhau
         embora seja coisa que não como há muitíssimo tempo
         só que ninguém poderá dizer que se trata de um prato gafanhão
         os bascos e os galegos também a fazem
         — Deixa-te de divagações e vem dar uma espreitadela
         disse o capitão Armando Vieira
         aproximou-se do fogão, retirou a tampa do tacho e uma intensa nuvem de vapor subiu no ar
         depois de a deixar dissipar, o capitão Vieira fechou os olhos e aproximou o rosto do recipiente, de onde saía, junto com a branda fumarada, o som de um suave borbulhar
          — Oh, assim estragas a surpresa, Armando
         protestou Adélia
         mas ele aspirava o vapor que saía do tacho e comentava:
         — Hum, este cheiro a salgado entra-me no nariz e trepa-me até à alma
         vem cheirar, vem cheirar este perfume que nos lembra o mar e é como se fossem as mãos dos anjos a acariciar o que há de melhor dentro de nós
         ah, e como formosa nos parece a vida saboreando estes petiscos
         melhor do que isto só  lagosta suada ou bacalhau á Freitas
         o tio Florêncio aproximou-se dele e espreitou para dentro do tacho
         aspirou também o cheiro da comida
         — Então que tal?
         — Não estou a ver o que possa ser
         cheira a bacalhau… mas ao mesmo tempo há qualquer coisa de diferente neste cheiro
         — São sames, sócio, são sames, que já não deves comer há muito tempo
         — Sames?
         caramba, há mais de trinta anos que não me lembrava sequer dessa estranha palavra, quanto mais comê-los   
         — Sim senhor, um guisadinho de sames de bacalhau, bem à gafanhoa
é ou não é?»

Excerto do capítulo oitavo
do romance “Ai, Amor”



NOTA: Só hoje me foi possível escrever este texto de homenagem a um escritor gafanhão que admirava pela originalidade da sua escrita cheia de memórias,  algumas das quais referentes à nossa terra e nossas gentes. Longe da casa, não tinha à mão o texto com o qual desejava prestar-lhe a minha gratidão. 

F.M.

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue