O que é lixo para nós pode ser vida para outros
«Sempre me conheci a olhar para as minorias, mesmo a nível da escola primária; juntava-me àqueles amigos que ninguém queria, porque vinham sujos; mas não consigo identificar as razões que me levavam a isso.» Esta foi a resposta que Joana Pontes deu à pergunta que lhe fizemos no início da conversa que tivemos com ela, no sentido de compreendermos os motivos por que se envolve em diversas campanhas de solidariedade, nomeadamente no projeto de recolha das tampinhas, que se materializa na dádiva de cadeiras de rodas para instituições do nosso município.
Joana Pontes tenta ligar essa sua louvável paixão pela entrega ao bem comum, em especial aos mais pobres, por ter passado muito tempo nos hospitais, desde tenra idade, pois sofre de uma doença rara que a levou a diversas intervenções cirúrgicas e a prolongados tratamentos. Nos hospitais, «era capaz de não estar a brincar com nenhuma criança, mas se visse entrar uma portadora de alguma deficiência, eu já saía com facilidade do banco para estar com ela».
O projeto das tampinhas surgiu em 2005/2006. «Eu estava a ver televisão na hora da refeição e ouvi a história de uma pessoa que tinha recolhido tampas para adquirir cadeiras de rodas; tanto bastou para me entusiasmar pela ideia.» Era tempo de férias e os seus colegas começavam a trabalhar nas esplanadas, mas a Joana «não tinha condições físicas para esse tipo de trabalho e ficava sempre em casa a fazer qualquer coisa».
Então pensou: «Quando ouvi aquela notícia, achei que era uma forma de ocupar as minhas férias de verão e ao mesmo tempo conseguiria também comprar uma cadeira de rodas para uma pessoa que precisasse dela.» A partir daí, foi apresentar o projeto à Junta de Freguesia da Gafanha da Nazaré para conseguir o transporte, e começou a recolha que até foi fácil, «porque tinha o dia todo».
Divulgou a campanha de recolha pela nossa Gafanha, incluindo a Barra, bateu à porta de todos os cafés e outros estabelecimentos, espalhou folhetos com os seus contactos e com as ideias que a estimulavam; contudo, encontrou sempre algumas pessoas que não compreendiam muito bem como é que se conseguia uma cadeira de rodas com as tampinhas; até nem faltou quem criticasse e dissesse que ela andava a fazer isto para arranjar algum dinheiro para si. «Não desanimei e quando esperava ter conseguido uma tonelada de tampinhas, ao fim de um ano, afinal tinha quatro, o que permitiu comprar outras tantas cadeiras de rodas», disse.
As tampinhas são guardadas em casa dos seus pais, e se no princípio era ela própria quem fazia a recolha, passando regularmente pelos estabelecimentos que se dispuseram a colaborar, agora, que «as pessoas ganharam confiança», são elas próprias que lhe levam as tampinhas a casa, onde seu pai organiza o acondicionamento para a Câmara Municipal de Ílhavo proceder ao transporte.
Com esta campanha, a Joana tem oferecido as cadeiras à instituições concelhias, tendo sido o Lar Nossa Senhora da Nazaré, a Fundação Prior Sardo, o Lar de São José e o CASCI as primeiras beneficiadas. E o trabalho vai prosseguir porque a nossa entrevistada não é pessoa para desistir, apesar das suas limitações, pois já está à espera de ficar numa cadeira de rodas desde os quatro anos.
A propósito das suas doenças, fez questão de sublinhar que tem feito «muita aprendizagem a partir das limitações» que lhe ocorrem, acrescentando: «Se eu não tivesse os problemas que tenho, não teria esta visão que me leva a ajudar os outros; como crente, eu acredito que quem nos governa me escolheu para ter estes problemas, porque sabia que eu tinha força para os enfrentar e eu quero provar que sim.» E afinal, adianta, «eu vejo tantas situações tão complicadas ao pé das minhas limitações, que nem penso lamentar a minha vida, porquanto poderia estar muito pior».
Joana fez questão de salientar que já recebe tampinhas da Alemanha, graças ao entusiasmo da família Conde (Marco e seus pais, Fátima e Júlio Conde), que providenciam o envio das mesmas através de pessoa amiga que faz transportes entre Portugal e a Alemanha e vice-versa.
Joana Pontes é técnica do serviço social, um curso a condizer com o seu gosto pelas causas da solidariedade, exercendo funções profissionais no Centro Social Paroquial Nossa Senhora da Nazaré, «juntando o útil ao agradável».
Com toda esta envolvência em prol de quem mais precisa, a Joana já se comprometeu a assumir responsabilidades na Cáritas Paroquial, que considera ser «um desafio muito grande». Presentemente, está a tentar perceber como é que a Cáritas funciona, mas reconhece que esta vai ser «uma excelente oportunidade para continuar a envolver a comunidade no Capital Social, isto é, a sentir que «o que é lixo para mim pode ser vida para outros».
Assim, a Joana Pontes «quer ajudar a comunidade a olhar mais para quem mais precisa, apostando numa responsabilização de todos». E sublinha: «Na Cáritas há muito mais trabalho do que distribuir bens às pessoas e famílias carenciadas, embora isso também seja preciso». Defende que é urgente «cultivar o espírito de vizinhança, de cooperação e de entreajuda, mas «nesta área ainda tenho muito que aprender», frisou. E da sua experiência tem registado que «já não estamos tanto na tipificação dos que não querem trabalhar e são subsidiodependentes, mas confrontamo-nos com os que ficaram no desemprego, perderam a sua casa e sentem que a vida começou a descarrilar; são pessoas ditas normais com dificuldades extremas, de pobreza encoberta; e temos de pensar que amanhã qualquer um de nós pode estar em situação idêntica».
Fernando Martins