E o Natal aconteceu…
Aquela pequena aldeia no sopé da montanha parecia uma pequena cidade. Ficava no fim da estrada que vinha de longe logo após a ponte que atravessava o pequeno rio, tendo como pano de fundo a alta montanha coberta de árvores com resquícios da neve acumulada durante a noite.
Inspirava uma certa quietude a quem se aproximava, começando por ver a torre da igreja num ponto mais alto e depois o fumo que saía de algumas chaminés nestes dias de fim de Outono.
Embora pequena, possuía muitas das comodidades de uma cidade, ainda que em ponto mais pequeno: a igrejinha era como uma pequena catedral, a escola primária, o salão de festas, o campo de jogos, a filarmónica, o grupo de teatro e o clube desportivo.
Embora pequena, possuía muitas das comodidades de uma cidade, ainda que em ponto mais pequeno: a igrejinha era como uma pequena catedral, a escola primária, o salão de festas, o campo de jogos, a filarmónica, o grupo de teatro e o clube desportivo.
Era também muito orgulhosa das suas tradições que ia relembrando através do ano, mas o que empolgava deveras toda a população era o Auto de Natal levado à cena pelos alunos da escola, anualmente no início das férias desta quadra, que o representavam no salão de festas. Era rara a família que não tinha um pequeno actor envolvido e à medida que o Natal se ia aproximando começavam a conjecturar quem iria representar quem.
Este ano a ansiedade era maior. Estaria a jovem professora, chegada no início do ano lectivo, à altura de tal responsabilidade? Logo que chegou à aldeia foi posta ao corrente da sua esperada colaboração como ensaiadora do nobre espectáculo que encerraria o primeiro período de aulas. Não podia falhar!
Os dias foram correndo e quando se aproximava o início dos ensaios, Simão, um dos alunos, segredou à professora com quem ficava só, no final da aula, enquanto limpava o quadro preto:
— Eu não me importo de não participar no Auto de Natal.
A professora não disse nada, não estava preparada para isso. Simão era um dos alunos mais velhos e o maior da escola. Porque o tamanho lho permitia ofereceu-se para limpar o quadro no final das aulas. Era adorado por todos os colegas que o viam como um protector nas brincadeiras da escola. Cá fora era estimado pela população a quem ele devotava toda a sua simpatia ajudando às vezes em pequenas tarefas. Alguns cães vadios esperavam-no à saída da escola com quem ele repartia o resto do lanche. Enfim, Simão era a bondade em pessoa. Mas nunca tinha participado no Auto de Natal. Simão aprendia como os outros, mas mais devagar. O seu talento era outro. Ao dirigir-se à professora naquele dia apenas queria facilitar-lhe a opção na escolha dos participantes no Auto. Gostava dela e queria facilitar-lhe as escolhas.
No dia seguinte, enquanto limpava o quadro a professora disse-lhe:
— Simão, conto contigo para uma intervenção no Auto de Natal. Vais ser o Estalajadeiro. O teu colega que fazia esse papel já terminou a escola e tu vais substitui-lo.
O coração de Simão deu um salto no seu peito. Tinha uma boa notícia para dizer aos pais quando chegasse a casa. A simpatia que nutria pela professora não era infundada.
E o dia de início dos ensaios na escola chegou. Tudo corria de feição: a maior parte dos alunos repetia os papéis de anos anteriores e de um modo geral todos conheciam o Auto de cor. Simão surgia quase no fim e repetia as palavras que estava habituado a ouvir em anos anteriores. Entretanto no salão de festas, depois das horas de trabalho os adultos iam montando o cenário. Tudo se preparava para o grande dia que terminaria com a ceia comunitária no fim da representação do Auto de Natal.
Chegou o último dia de aulas e com ele a representação do Auto. Jovens e adultos cada vez mais excitados à medida que se aproximava a hora. Os participantes já vestidos com os trajes adequados às cenas adquiriam a pose da responsabilidade que lhes era pedida. Simão era o mais feliz de todos. O rebuliço no Salão de Festas sossegou e o Auto começou à hora marcada. A professora exibia algum nervosismo pela tarefa de que havia sido incumbida. As cenas foram decorrendo com ovações sucessivas no final de cada uma. Aguardava-se a cena de mais um principiante: Simão.
José e Maria, esta montada num pequeno jumento, chegam à última estalagem do lugar. José bate à porta e surge o estalajadeiro. José pretende pernoitar com Maria que está grávida e cansada. O estalajadeiro impávido anuncia:
— Não pode ser, estamos cheios.
Habituado ao ritual o jumento nem espera pela ordem de marcha e avança a caminho da cena seguinte. O estalajadeiro entra mas regressa de novo banhado em lágrimas. Simão esquecera-se que estava a representar e grita:
— Esperem não vão embora. Estamos cheios mas vocês podem ficar no meu quarto.
Aflita a professora deita as mãos à cabeça. Mas a preocupação foi momentânea. A sala levanta-se em ovação e alguns adultos correm para o palco abraçando Simão. O jumento olha para trás ficando por momentos perplexo. Este ano o seu papel seria mais curto.
Seguiu-se a ceia um pouco mais cedo. Sem saber porquê Simão era o alvo das atenções.
A professora de vez em quando deitava-lhe o olhar e chorava. Mas eram lágrimas de felicidade. O Natal acontecera vindo do coração de uma criança.
(Dedicado a alguns anjos como o Simão que habitam entre nós.)
João MarçalNatal de 2012.