Natal da dignidade humana
Anselmo Borges
Numa troca célebre de cartas entre o cardeal Carlo M. Martini e o agnóstico Umberto Eco, publicadas com o título "In cosa crede chi non crede?", U. Eco escreve: Mesmo que Cristo fosse apenas o tema de um grande conto, "o facto de esse conto ter podido ser imaginado e querido por bípedes implumes, que só sabem que não sabem, seria miraculoso (miraculosamente misterioso)". O Homem teve, a dada altura, "a força, religiosa, moral e poética, de conceber o modelo do Cristo, do amor universal, do perdão aos inimigos, da vida oferecida em holocausto pela salvação dos outros. Se fosse um viajante proveniente de galáxias longínquas e me encontrasse com uma espécie que soube propor-se este modelo, admiraria, subjugado, tanta energia teogónica, e julgaria esta espécie miserável e infame, que cometeu tantos horrores, redimida pelo simples facto de ter conseguido desejar e crer que tudo isto é a Verdade."
Mas Jesus não é um simples conto ou um mito. Hoje, ninguém com honradez intelectual põe em dúvida a sua existência e há um acordo de base quanto a dados históricos fundamentais, como mostra Xabier Pikaza, na obra Quem Foi, Quem É Jesus Cristo?, que coordenei, e na qual especialistas de renome mundial tratam das perguntas essenciais sobre Jesus: uma biografia 'impossível' de Jesus, Jesus e a gnose, Jesus e Deus, Jesus e o dinheiro, Jesus e a política, Jesus e as mulheres, Jesus e as religiões, que quer dizer: "ressuscitar dos mortos"? Sintetizo X. Pikaza quanto ao consenso de base sobre "Jesus: quem foi, o que queria, que final?"
1. Jesus foi um profeta escatológico, que anunciou e actuou na perspectiva da acção iminente de Deus, que iria transformar a ordem social e política do mundo. 2. Foi um sábio, perito em humanidade, contando histórias iluminantes para a condução da vida, para lá da banalidade do mundo e em ordem ao seu entendimento e transformação. 3. Foi um taumaturgo e um carismático. Tinha "poderes" especiais, com grande capacidade de influência. Colocou-se do lado dos oprimidos, com "sinais" a seu favor, preocupando-se com a saúde das pessoas, a sua libertação e autonomia pessoal. 4. Foi homem de mesa comum. Estava interessado na comunicação viva e fraterna entre todos, como mostram os banquetes com pecadores e excluídos, ultrapassando as divisões entre puros e impuros. 5. Criticou uma forma de família baseada só na genealogia, para procurar uma forma nova de comunhão e inter-relação entre todos: num momento de grande desestruturação social, apresentou-se como impulsiona- dor de um movimento messiânico, aberto a todos e integrando os diversos estratos da sociedade, especialmente os marginalizados. 6. Foi um comprometido radical, de tal modo que a sua proposta não foi aceite por muitos "bons" judeus do seu tempo. Rompeu com normas sacras aceites pela maioria religiosa e abriu-se aos marginalizados sociais, num momento de grande crise económica, cultural, social e familiar. A sua proposta tornou-se perigosa, originando um conflito com os defensores da ordem religiosa e os representantes de Roma. 7. Foi um pretendente messiânico, executado em Jerusalém. Foi um profeta, um sábio, um carismático, mas não apenas isso. Ele subiu a Jerusalém pela Páscoa do ano 30 como portador do Reino de Deus, ainda que se discutam as características da sua pretensão. Foi rejeitado pelas autoridades sacerdotais de Jerusalém e condenado à morte por Pôncio Pilatos como "rei dos judeus". 8. Depois da sua morte, o seu movimento profético-messiânico manteve-se e transformou-se. Muitos continuaram a acreditar nele, confessando que ele está vivo em Deus. Reflectindo sobre o modo como viveu, como agiu e se comportou, sobre a sua experiência de Deus, que proclamou, com palavras e obras, como amor incondicional, tiveram a experiência avassaladora de que ele não morreu para o nada, mas para o interior da Vida plena de Deus. É o Vivente em Deus.
Afinal, o Natal verdadeiro é o Natal da dignidade humana. Como dizia o filósofo ateu Ernst Bloch, foi com Jesus que sabemos que nenhum ser humano pode ser tratado como "gado". Já Hegel tinha escrito também que por ele sabemos da dignidade divina do ser humano. Bom Natal!
No DN