Por Maria Donzília Almeida
Donzília na sua juventude
“Nunca ousei ser um radical na juventude.
Tinha medo de me tornar um conservador depois de velho.”
Robert Frost
Quando este tema é abordado pela idade sénior, há uma tendência para se assumir o ar paternalista de quem é dono da verdade e para quem a juventude é uma faixa da população a abater!
Esquecem-se esses que assim pensam, que também já passaram pela mesma fase, cometeram os mesmos erros e as irreverências próprias da idade.
A juventude que todos invejam, quando já a passaram, é a fase da vida de todos os sonhos, de todas as conquistas, de todas as descobertas. Quem já a ultrapassou, há bastante tempo, sente agora a nostalgia dos “bons velhos tempos”!
Reportando-me à minha, que decorreu na gloriosa década sessenta/setenta, do século XX, evoco aquela energia incontida, aquele desejo de reformar o mundo! Surge então a época da contestação do status quo, alimentada pelos movimentos pacifistas americanos, que dão corpo a toda a contestação juvenil, um pouco por todo o mundo. Também, por cá, apareceram hippies; também andei de flor no cabelo, também vesti bermudas de ganga, pelo joelho, com franja esfiapada, também partilhei da contestação política que se esboçava na vida académica.... etc
Vivi a juventude com o fervor da época reinante, a trautear as canções dos Beatles, dos Rolling Stones, do par romântico, Johnny Hallyday/Sylvie Vartan, da Françoise Hardy, da Rita Pavone, et cetera... Não posso esquecer a inglesa Sandie Shaw que ganhou o festival da canção em Viena de Áustria, em 1967, cantando descalça! Sabia de cor a “Puppet on a string” e as melodias favoritas. Vivia com paixão! Tinha eu 17 frescos anos!
Assisti à ascensão da adolescente Gigliola Cinquetti a conquistar o 1.º lugar no Festival de Sanremo em 1964 e tantos outros ídolos da nossa juventude que nos fizeram vibrar!
O sentido de aventura, tão característico desta fase, também me bateu à porta. Numa altura em que as comunicações entre as pessoas não se faziam, com os meios de que hoje se dispõe, sem telefone e o telemóvel nem sequer fora concebido, só se via a família, quando se vinha passar o fim de semana a casa! Uma vez por mês!
Num desses muitos fins de semana que passava em Coimbra, eu e as colegas de quarto, conspirámos, no segredo dos deuses e planeámos ir passá-lo à capital. Foi tudo programado ao pormenor: alojamento em casa de amigas, os itinerários a fazer, os lugares a visitar.
Numa 6.ª feira, à noite, lá partimos, no comboio, com o coração cheio de sonhos e ilusões! Desilusões? Só na idade adulta! A ânsia do desconhecido, o sentido de aventura que nos norteava, faziam derrubar qualquer barreira que se interpusesse no nosso caminho. O coautor...também alinhou na viagem de grupo, mas com outro objetivo bem traçado – visitar a sua bem amada, que na altura estudava em Lisboa. Duma dedicação a toda a prova, alinhava nos nossos convívios, mas sem nunca perder de vista que era uma pessoa comprometida! Naqueles tempos, ainda se usava a palavra fidelidade!
Na capital, sentíamo-nos como turistas, vindos de fora e mirávamos tudo, absorvíamos tudo, como se a vida nos escapasse!
Um dos nossos destinos foi o aeroporto! Aí, senti o fascínio de um ambiente cosmopolita, onde se ouviam os mais diversos linguajares. Aí, sonhei como seria bom viajar, conhecer outras culturas, outros povos, enfim, outras civilizações. Aí, dei largas ao meu sonho e perspetivei-me no futuro, como uma frequentadora deste espaço, uma cidadã do mundo! Nesses tempos, bastava-me ver os aviões...o resto era sonho! “O sonho comanda a vida...”diz o António Gedeão! Hoje, mais madura, mais exigente, não me contento com a vista, quero sentir o avião, tocar-lhe, ouvir o seu pulsar! Apesar de esse sonho se ter realizado, a minha passagem pelos aeroportos, ainda não se banalizou, pela frequência! Quando entro num avião e o sinto descolar da pista, a mesma emoção, o mesmo fascínio da juventude! Extasio-me perante a grandeza da máquina! Aqui...não cresci... mantenho as sensações da adolescência! É um espaço e um tempo que desfruto com muito prazer e as horas que passo, no aeroporto, são sempre o prelúdio de umas férias promissoras!
Todo o movimento humano, naquelas figuras esbeltas dos pilotos e comissários de bordo, eram, na altura, como o são ainda hoje, colírio para a vista cansada!
De regresso do aeroporto, abancámos, numa esplanada, em plena Avenida da Liberdade e aí, saboreámos uma deliciosa bica. A conversa fluía ao ritmo da nossa taquicardia. Assim explicava a L... estudante de Medicina.
Regressámos, no domingo à noite, a tempo de assistirmos a todas as aulinhas previstas, na 2.ª feira! Uma grande aventura, que não teve outra consequência para além disso mesmo!
Passados anos, já concluída a licenciatura, relatei aos pais a “transgressão” e fiquei admirada com a condescendência e a tolerância manifestadas. Afinal, nada de mal nos acontecera e estas “cenas” contribuem, em grande medida para o nosso crescimento, como seres autónomos. Como diriam os psicólogos da atualidade, são estruturantes da personalidade.
Na juventude, vivemos tão cheios de ideais, que até queremos reformar o mundo: lutamos pela paz, como se fosse possível construí-la com guerras, guerrilhas ou lutas de qualquer espécie! Para atestar a contradição daquela frase, “Lutar pela paz....” recordo, vivamente, uma frase inscrita nos assentos dum anfiteatro da FLUC, que rezava assim: “Fighting for peace is like fucking for virginity!” Tudo dito!
À medida que a idade avança, vamos restringindo o campo da nossa atuação, como lutadores por grandes ideais! Discordamos dos sentidos políticos que norteiam o país e... queremos reformar a política, a sociedade. Neste âmbito, assisti à génese dos movimentos de esquerda, que no meio estudantil têm um bom alfobre! Nascem e crescem e proliferam, com bastante desenvoltura!
Mais tarde, quando pensamos que atingindo a autonomia financeira, somos donos do mundo, queremos reformar a política familiar: os pais são ultrapassados pelas ideias vanguardistas dos filhos que querem doutriná-los.
Por fim, quando atinge a idade madura, qualquer jovem de outrora, está ansioso por pedir...a sua própria reforma! Os ideais...vão afunilando, numa relação inversamente proporcional à idade.
Foi na década de 60 do século passado que tiveram protagonismo os famosos bailes de garagem, onde se reunia a nata jovem da época, aqui nas Gafanhas, mormente os que se aventuravam no mundo do conhecimento. Era responsável pelo espaço o coautor, que utilizava a garagem dum familiar. L.L. Com música de cassete e um gravador improvisado, confraternizava-se na mais salutar convivialidade. Sem poluição sonora nem atmosférica! Drogas....só na drogaria da esquina!
Uma outra recordação que guardo dos verdes anos, foi um episódio, na casa onde me encontrava hospedada. Em “reunião magna”, como fazia parte da ordem do dia, na velha Academia, após o dia 17 de Abril de 1969, nesse mesmo ano, mas desta vez, em círculo restrito, isto é na camarata, fizemos nova conspiração! Mais uma! Decidimos, por unanimidade, fazer um “assalto” à cozinha, onde, a dona da casa, acondicionava as compotas deliciosas que fazia, no outono. Devo esclarecer que a senhora nos tratava muito bem, cozinhava primorosamente, mas... a irreverência da juventude, não se compadece!
Tanto ouvíamos as peripécias que os nossos colegas faziam nas repúblicas! Aí faziam trinta por uma linha, até levarem sinais de trânsito da via pública, para sinalizarem os sentidos que lhes convinha, em casa! As meninas... muito puritanas (!?) também tinham que fazer das suas!
Então, pé, ante pé, descalças, pela calada da noite, lá fomos em filinha indiana! Sem qualquer trabuco, para que a dona da casa não suspeitasse daquela invasão à mão desarmada! Sim, não levávamos qualquer arma para o ataque, já que o mínimo ruído poderia ser a morte do artista! Mas... como poderíamos tirar a compota do frasco? Vem à memória, a cena da raposa a comer papas numa garrafa, ou a cegonha a comê-las num prato!
A imaginação da juventude é prodigiosa e quase tudo resolve. Munidas de agulhas de crochet... que utilizávamos nos tempos livres, lá foram as conspiradoras ao ataque! A compota, feita aos bocados de fruta caramelizada, foi pasto para esta horda de comilões!
Para tranquilizar os mais céticos, devo referir que os “beligerantes” desta pseudo-maçonaria, ocuparam, na idade adulta, cargos de alguma responsabilidade, como engenheiros, médicos, professores e outros, na sociedade civil e demonstraram ser pessoas de bem! Não resultou nenhum delinquente!
Hoje, são todos sexagenários assumidos que viveram a juventude na gloriosa década de 60, do século XX e vivem, hoje, a sua década de 60, no século XXI. Não é isto enternecedor?
No entardecer da vida, se não tivéssemos cometido estes pecadilhos, de fácil absolvição, (!?) creio eu, com que colorido alimentaríamos as nossas tertúlias de amigos, ao serão?
12.08.2012