Anselmo Borges
A sabedoria da história bíblica das vacas gordas e das vacas magras - armazenar no período da abundância para os tempos de dificuldade - há muito que foi esquecida entre nós. E aí está a crise, incalculável, na perplexidade, e sobretudo sem horizontes de futuro. Ninguém nos diz o que se pode razoavelmente esperar, depois de tanta crise e sacrifícios sem fim, e este é o perigo maior.
Há a crise mundial, uma imensa interrogação sobre o que ainda se chama União Europeia, a subordinação da política ao poder económico-financeiro. Entre nós, é tudo isto. Mas não só.
É certo que o País mudou, e nem tudo foi mau. A rede viária, por vezes até com excessos desnecessários - que interesses estavam em causa? -, permite comunicação rápida. Pôs-se fim ao analfabetismo. Há nichos de excelência na investigação e no ensino. Houve alguma mudança nas mentalidades, a convivência com outras culturas e religiões é boa. Grandes camadas da população viram o seu nível de vida melhorado.
Mas, depois, há perguntas que inevitável e desesperadamente se colocam, e todas, quando se pensa na situação presente e no que aí vem, convergem para esta: como foi possível chegar à beira do abismo em que nos encontramos?
Tem-se a sensação de que houve uma imensa ilusão, que desemboca, agora, na desilusão. Afinal, quando se devia fazer a transformação do aparelho produtivo, em geral não se fez. Pior: foram dados sinais aos portugueses de que estavam em vésperas de se tornarem ricos, de tal maneira que eles se puseram a consumir sem regra nem medida. Até se começou a dar reformas aos 50 anos! Os Bancos puseram os portugueses a engolir cartões de crédito, mesmo para fazer férias. Muitos pensaram que já nem era preciso trabalhar. Era evidente que a factura chegaria: como se poderia continuar a viver acima das posses?
Foram postergados valores como a honra e a família. Apesar dos tais nichos de excelência, a educação está envenenada. Que interesses foram satisfeitos, quando se permitiu a abertura indiscriminada de instituições de ensino superior? Quem se atreverá a dizer que a Justiça funciona? Quem porá termo ao roubo e à corrupção ao longo de três décadas? Como se chegou a tanta assimetria social? - mais de 20% da população trilham o caminho da pobreza, e muitos, da miséria, quando se sabe das remunerações escandalosas de gestores e da acumulação de reformas chorudas.
Em todo este tempo, com tantos Governos e políticos, quem se lembra de quantos verdadeiros estadistas? Serão os partidos instituições empregadoras? Nas campanhas eleitorais, há real propósito de esclarecer? É o trabalho pela causa pública e pelo bem comum que seduz a maioria dos políticos de carreira? Serão necessários tantos deputados e secretárias e motoristas? A quem servem as parcerias público-privadas e as consultadorias externas?
Fica-se atónito, quando se pensa, por exemplo, na desgovernação de projectos como o TGV, o aeroporto, auto-estradas, pagamento nas Scut. E as promessas? Ainda há meses, havia dinheiro para mais auto-estradas, TGV, novo aeroporto. E não haveria aumento de impostos. Estava tudo garantido por anos. De repente, cortes sem fim, um verdadeiro tsunami de impostos, que, para cúmulo, atinge sobretudo as camadas mais pobres. Será legítimo mentir em política ou ser incompetente? Mas que fique claro: as responsabilidades não são só das últimas legislaturas.
Anuncia-se uma greve geral. É preciso dar um sinal forte a todos, traduzido nestas palavras: protesto, luto, reflexão. Protesto contra a irresponsabilidade, mentira e injustiça. Luto, porque o essencial das decisões já vem de fora - Bruxelas, Berlim, FMI. Reflexão: para onde queremos ir?
Mas, quando se reflecte mesmo e se pensa na actual situação e, por exemplo, na teatralização inquietante da vida político-partidária, assalta-nos esta pergunta terrível: onde está a alternativa? Este é o drama e o perigo.