sábado, 15 de março de 2008

AS VÍTIMAS INOCENTES: TRISTEZA METAFÍSICA


Na encíclica sobre a esperança Salvos em Esperança, Bento XVI debruça-se sobre uma pergunta decisiva - "a pergunta fundamental da filosofia" (Max Horkheimer): o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? As vítimas inocentes clamam, um grito sem fim e ensurdecedor percorre a História.
No mundo moderno, conduzido em grande parte pela ideia de progresso, ergueu-se, nos séculos XIX e XX, um ateísmo moral por causa das injustiças do mundo e da História. "Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder, não pode ser obra de um Deus bom."
Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus, que é preciso recusar por causa da moral.
Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a justiça no mundo. Mas não será esta uma pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? "Um mundo que tem de criar a sua justiça por si mesmo é um mundo sem esperança. Ninguém nem nada responde pelo sofrimento dos séculos", escreve o Papa.
Aqui, Bento XVI apela para a Escola de Frankfurt, nomeadamente para Max Horkheimer e Theodor Adorno, que viveram filosoficamente a inconsolável "tristeza metafísica" da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível a edificação de uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz. A razão é simples: ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e então seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por essas vítimas, mas então não era humana, porque insolidária.
Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião "no bom sentido" é, segundo Horkeimer, "o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça". Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o "anelo do totalmente Outro", o "anelo da justiça universal cumprida", "a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra".
Esta esperança tem de traduzir-se numa praxis solidária tal que "não se possa pensar que não existe um Além". Nesta praxis, está implicado o pensamento do Absoluto, não para afirmá-lo, mas como anelo de que o finito e o mundo da injustiça não sejam a ultimidade e o definitivo.
Também neste sentido, Adorno escreveu que "o pensamento que se não decapita desemboca na transcendência". Frente às aporias da razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria "o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção". Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal.
Em diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, Bento XVI reconhece que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é "um motivo importante para crer que o Homem está feito para a eternidade", "mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavra" convence da necessidade da ressurreição dos mortos e da vida eterna.
Na Sexta-Feira Santa, lembra-se Cristo na cruz, que morre, inocente, e gritando uma oração em pergunta, que atravessa os séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" Os cristãos acreditam que o Deus do amor, seu Pai, respondeu, ressuscitando-o dos mortos, dando esperança ao clamor das vítimas da História.


Anselmo Borges, no Diário de Notícias

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