MARIA DO CÉU
Com os anos a pesarem, a varredora arrasta-se no seu labor mecanizado na busca das folhas caídas do arvoredo. Empregada da empresa encarregada do asseio citadino, vejo-a com frequência da esplanada do bar onde matinalmente costumo saborear o café, de mistura com o ar puro que o parque me oferece.
A mulher deambula de um lado para o outro indiferente aos olhares de quem está ou passa. Baixa-se com dificuldade, puxa com as poucas forças que lhe restam o saco preto de plástico semicheio de lixo, ergue-o a custo para o despejar no carro de mão e volta à cata de mais folhas, mas também de papéis atirados para o chão por gente graúda e miúda que corre apressada, sem cuidar de saber das recomendações que periodicamente se badalam para haver respeito pelo ambiente, que é propriedade de todos. De quando em vez, o capataz lá aparece para dar as suas ordens:
– Olhe ali; quero isto limpinho como um brinco; não quero queixas de quem paga!
Maria do Céu, assim se chama a mulher que me prende a atenção e me desperta os sentimentos nascidos à sombra de quem sofre e luta, obedece apressada sem mostrar enfado, num gesto maquinal de quem está habituada a cumprir ordens.
De rosto cansado por vida agreste, os seus olhos claros e expressivos não escondem uma beleza que teima em se manter viva. Já reformada da indústria conserveira, continua a trabalhar porque tem de ser. Porque a sua reforma e a do marido, incapacitado por doença degenerativa, não dão para sobreviver.
A renda de casa, a alimentação modesta e os medicamentos do dia-a-dia levam todo o dinheiro que chega no fim de cada mês. Os dois filhos, casados e com encargos familiares, não descobrem hipóteses de os ajudar, embora sintam ser sua obrigação olhar por quem lhes deu o ser e a educação.
Maria do Céu sabe disso e até já tem conversado com o marido, o Zé Morgado, lamentando a sina de quem nasce pobre. Com fracos ordenados, pouco puderam dar aos filhos para singrarem na vida, para além da arte da pesca costeira, que ambos assumem com alguma vaidade. Não são eles lobos-do-mar? O que ganham, porém, mal dá para educar os rebentos que vão crescendo e para o dia-a-dia, sem grandes aventuras.
A meio da manhã, sol forte de Verão a convidar ao descanso, apenas por uns minutos, a varredora senta-se à sombra de uma árvore enorme, com décadas de existência a enfrentar as ventanias que assolam a região, em qualquer época do ano.
De um saco de plástico com asas, dos que são oferecidos nas compras, sejam ricas ou triviais, tira uma sandes de qualquer coisa, que a distância não deixa perceber, e come, mastigando serenamente, como quem deseja perpetuar o tempo ali sentada.
Maria do Céu não consegue esquecer o seu Zé. Agora lembra-se de como seria bom estar junto dele, apesar de a doença o levar a ficar cada vez mais rezingão. Protesta por isto ou por aquilo, mas logo a seguir dirige olhares de ternura para quem o acompanha, com muito amor, há mais de 40 anos.
Os dois são um casal feliz, apesar das agruras da vida, desde o dia inesquecível do seu casamento na igreja matriz, onde juraram amor e fidelidade até à morte. Jovens, olharam para o futuro com esperança, alimentando sonhos que se foram multiplicando, ao mesmo tempo que muitos deles se esboroaram. Sem angústia, aceitam a pouca sorte que os acompanha, habituando-se a viver com o pouco que vão tendo. Ao bater do meio-dia, apressa-se a arrumar as alfaias do seu trabalho e vai apressada a casa, para ajudar o marido no que for preciso.
O almoço, feito de véspera, é coisa simples, desde há muito: uma sopinha e fruta. Pouca porque é cara. Mas neste dia o seu José não quer comer. Diz-se cansado e sem apetite. Não resmunga e ao ralhete da mulher, para que coma, responde com um silêncio que a inquieta. Nem por isso, contudo, pensa que seja algo de grave.
– Queres ir ao Centro de Saúde? – pergunta Maria do Céu.
A resposta, lacónica, é um não ciciado. Nessa tarde, a varredora está ausente das suas obrigações profissionais. Os seus pensamentos voam para casa, para junto do homem que é a razão do seu viver. No parque, os trabalhos rotineiros sucedem-se, sem grande esforço mental. Mas o desejo que a domina diz-lhe para deixar tudo e para correr para junto do seu Zé. Correr como quem busca uma certeza: a de que ele está bem, que aquilo não passa de um incómodo passageiro.
Ao bater das seis da tarde, larga tudo e parte apressada e ansiosa. José está prostrado, indiferente à vida. Maria do Céu olha-o, assustada, e grita pela vizinha. A ambulância leva-o, já a desligar-se do mundo, para o hospital. Não há nada a fazer.
A varredora volta ao quotidiano, depois do luto estipulado por lei. Recusa o convite dos filhos para morar com eles, um mês em casa de cada um, para não se sentir abandonada. Não há quarto para a mãe, mas tudo se arranja. Não aceita. Nem quer pensar em deixar o lar modesto em que sempre vivera com o seu José. Ali vai continuar até Deus querer. Com as suas recordações, com sonhos realizados e por realizar, pisando o chão que foi de ambos, ouvindo os risos dos filhos pequenos, sentindo as palavras, as gargalhadas e a teimosia rezingona do homem que ama e a faz feliz. Aos fins-de-semana recebe a visita dos filhos e netos. Nos primeiros tempos de viuvez, com regularidade. Depois tudo volta a ser como dantes.
Maria do Céu começa a sentir-se mais só. O trabalho regressa à normalidade. De manhã cedo, no parque verdejante e cheio de arvoredo, aprecia o ambiente de forma diferente, enquanto recolhe a natureza morta. Por lá ciranda muita gente. De quando em vez, há crianças que brincam, correm e jogam, perante os olhares atentos dos professores e educadoras. A varredora olha-as enternecida e regressa à infância dos seus filhos. Reconhece que está a rejuvenescer.
Agora, todas as manhãs acorda com pressa de ir para o parque. O desejo de ver as crianças com tanta vida dá-lhe mais ânimo. E consegue trabalhar com um olho no lixo e outro na ingenuidade amorosa de quem começa o jogo da vida. Maria do Céu sente-se mulher para continuar a lutar. Até parece que não a afecta o peso dos anos. Nem sequer dá pelas dores nos ossos e músculos. E à noite, quando se deita, os seus pensamentos não conseguem sair do parque.
De manhã, lá estará no meio de tudo e de todos, sem que ninguém a note e sem perturbar quem está. Há dias, numa tarde amena, contra o que era costume, não tem vontade de regressar a casa. Por ali está bem, presa a gestos e a sorrisos cantantes que lhe não saem do ouvido. À tardinha, as crianças deixam o parque com os seus acompanhantes e Maria do Céu resolve descansar um pouco. Sentada, junto da árvore que adoptou como sua, fecha os olhos e recorda o que a vida lhe havia dado de bom com seu Zé e seus filhos. Como tantas vezes havia feito ao longo da existência. Adormece tranquilamente, com a cabeça a cair-lhe sobre o peito. O capataz, ao vê-la assim, aproxima-se e pergunta:
– Maria do Céu, então o trabalho? A varredora não responde. Foi encontrar-se com o seu Zé.
Fernando Martins
A mulher deambula de um lado para o outro indiferente aos olhares de quem está ou passa. Baixa-se com dificuldade, puxa com as poucas forças que lhe restam o saco preto de plástico semicheio de lixo, ergue-o a custo para o despejar no carro de mão e volta à cata de mais folhas, mas também de papéis atirados para o chão por gente graúda e miúda que corre apressada, sem cuidar de saber das recomendações que periodicamente se badalam para haver respeito pelo ambiente, que é propriedade de todos. De quando em vez, o capataz lá aparece para dar as suas ordens:
– Olhe ali; quero isto limpinho como um brinco; não quero queixas de quem paga!
Maria do Céu, assim se chama a mulher que me prende a atenção e me desperta os sentimentos nascidos à sombra de quem sofre e luta, obedece apressada sem mostrar enfado, num gesto maquinal de quem está habituada a cumprir ordens.
De rosto cansado por vida agreste, os seus olhos claros e expressivos não escondem uma beleza que teima em se manter viva. Já reformada da indústria conserveira, continua a trabalhar porque tem de ser. Porque a sua reforma e a do marido, incapacitado por doença degenerativa, não dão para sobreviver.
A renda de casa, a alimentação modesta e os medicamentos do dia-a-dia levam todo o dinheiro que chega no fim de cada mês. Os dois filhos, casados e com encargos familiares, não descobrem hipóteses de os ajudar, embora sintam ser sua obrigação olhar por quem lhes deu o ser e a educação.
Maria do Céu sabe disso e até já tem conversado com o marido, o Zé Morgado, lamentando a sina de quem nasce pobre. Com fracos ordenados, pouco puderam dar aos filhos para singrarem na vida, para além da arte da pesca costeira, que ambos assumem com alguma vaidade. Não são eles lobos-do-mar? O que ganham, porém, mal dá para educar os rebentos que vão crescendo e para o dia-a-dia, sem grandes aventuras.
A meio da manhã, sol forte de Verão a convidar ao descanso, apenas por uns minutos, a varredora senta-se à sombra de uma árvore enorme, com décadas de existência a enfrentar as ventanias que assolam a região, em qualquer época do ano.
De um saco de plástico com asas, dos que são oferecidos nas compras, sejam ricas ou triviais, tira uma sandes de qualquer coisa, que a distância não deixa perceber, e come, mastigando serenamente, como quem deseja perpetuar o tempo ali sentada.
Maria do Céu não consegue esquecer o seu Zé. Agora lembra-se de como seria bom estar junto dele, apesar de a doença o levar a ficar cada vez mais rezingão. Protesta por isto ou por aquilo, mas logo a seguir dirige olhares de ternura para quem o acompanha, com muito amor, há mais de 40 anos.
Os dois são um casal feliz, apesar das agruras da vida, desde o dia inesquecível do seu casamento na igreja matriz, onde juraram amor e fidelidade até à morte. Jovens, olharam para o futuro com esperança, alimentando sonhos que se foram multiplicando, ao mesmo tempo que muitos deles se esboroaram. Sem angústia, aceitam a pouca sorte que os acompanha, habituando-se a viver com o pouco que vão tendo. Ao bater do meio-dia, apressa-se a arrumar as alfaias do seu trabalho e vai apressada a casa, para ajudar o marido no que for preciso.
O almoço, feito de véspera, é coisa simples, desde há muito: uma sopinha e fruta. Pouca porque é cara. Mas neste dia o seu José não quer comer. Diz-se cansado e sem apetite. Não resmunga e ao ralhete da mulher, para que coma, responde com um silêncio que a inquieta. Nem por isso, contudo, pensa que seja algo de grave.
– Queres ir ao Centro de Saúde? – pergunta Maria do Céu.
A resposta, lacónica, é um não ciciado. Nessa tarde, a varredora está ausente das suas obrigações profissionais. Os seus pensamentos voam para casa, para junto do homem que é a razão do seu viver. No parque, os trabalhos rotineiros sucedem-se, sem grande esforço mental. Mas o desejo que a domina diz-lhe para deixar tudo e para correr para junto do seu Zé. Correr como quem busca uma certeza: a de que ele está bem, que aquilo não passa de um incómodo passageiro.
Ao bater das seis da tarde, larga tudo e parte apressada e ansiosa. José está prostrado, indiferente à vida. Maria do Céu olha-o, assustada, e grita pela vizinha. A ambulância leva-o, já a desligar-se do mundo, para o hospital. Não há nada a fazer.
A varredora volta ao quotidiano, depois do luto estipulado por lei. Recusa o convite dos filhos para morar com eles, um mês em casa de cada um, para não se sentir abandonada. Não há quarto para a mãe, mas tudo se arranja. Não aceita. Nem quer pensar em deixar o lar modesto em que sempre vivera com o seu José. Ali vai continuar até Deus querer. Com as suas recordações, com sonhos realizados e por realizar, pisando o chão que foi de ambos, ouvindo os risos dos filhos pequenos, sentindo as palavras, as gargalhadas e a teimosia rezingona do homem que ama e a faz feliz. Aos fins-de-semana recebe a visita dos filhos e netos. Nos primeiros tempos de viuvez, com regularidade. Depois tudo volta a ser como dantes.
Maria do Céu começa a sentir-se mais só. O trabalho regressa à normalidade. De manhã cedo, no parque verdejante e cheio de arvoredo, aprecia o ambiente de forma diferente, enquanto recolhe a natureza morta. Por lá ciranda muita gente. De quando em vez, há crianças que brincam, correm e jogam, perante os olhares atentos dos professores e educadoras. A varredora olha-as enternecida e regressa à infância dos seus filhos. Reconhece que está a rejuvenescer.
Agora, todas as manhãs acorda com pressa de ir para o parque. O desejo de ver as crianças com tanta vida dá-lhe mais ânimo. E consegue trabalhar com um olho no lixo e outro na ingenuidade amorosa de quem começa o jogo da vida. Maria do Céu sente-se mulher para continuar a lutar. Até parece que não a afecta o peso dos anos. Nem sequer dá pelas dores nos ossos e músculos. E à noite, quando se deita, os seus pensamentos não conseguem sair do parque.
De manhã, lá estará no meio de tudo e de todos, sem que ninguém a note e sem perturbar quem está. Há dias, numa tarde amena, contra o que era costume, não tem vontade de regressar a casa. Por ali está bem, presa a gestos e a sorrisos cantantes que lhe não saem do ouvido. À tardinha, as crianças deixam o parque com os seus acompanhantes e Maria do Céu resolve descansar um pouco. Sentada, junto da árvore que adoptou como sua, fecha os olhos e recorda o que a vida lhe havia dado de bom com seu Zé e seus filhos. Como tantas vezes havia feito ao longo da existência. Adormece tranquilamente, com a cabeça a cair-lhe sobre o peito. O capataz, ao vê-la assim, aproxima-se e pergunta:
– Maria do Céu, então o trabalho? A varredora não responde. Foi encontrar-se com o seu Zé.
Fernando Martins