quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

UM ARTIGO DE D. ANTÓNIO MARCELINO

D. António Marcelino
ANO DE ESPERANÇA
QUE AS FRUSTRAÇÕES
DIFICULTAM
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Conhecida a situação presente e vendo as tendências que se manifestam, com maior clareza no contexto geral do país, não é difícil prever os tempos que se avizinham.Há acontecimentos em campo, como o referendo sobre o aborto, que, qualquer que seja a solução encontrada, as coisas já estão tão baralhadas e as pessoas tão rotuladas, que os problemas surgidos serão graves e inevitáveis e o fosso, entre pessoas e grupos, mais fundo e intransponível. As fracturas nas relações pessoais e sociais serão cada vez maiores, mesmos nos espaços habitados por gente do mesmo ofício, que tem de coexistir. As alterações que se vão dar nas relações são, por agora, imprevisíveis. As tendências centralizadoras, fiscalizadoras e totalitárias do governo, de que a gente atenta já se apercebeu, e das quais se fala e se escreve, por enquanto, sem peias nem censura, manifestam-se em campos bem diversos e não convidam nem à participação, nem à corresponsabilidade. A prática democrática vai ficando cada vez mais distante e confinada a umas tantas coisas, sempre muito emblemáticas e para que se veja. O povo é ignorado sobre problemas graves que lhe respeitam; e pode perguntar-se se ainda ordena alguma coisa. Até as medidas acertadas se tornam odiosas, porque não houve ou não se quis que houvesse tempo para escutar e para explicar, passando-se assim ao lado de um direito normal dos cidadãos em regimes democráticos. As sondagens dão o que se quiser e os males existentes, ainda que expressivos, de sectores conhecidos, já não são passíveis de uma justa e normal relativização. A crise atingiu instituições fundamentais da vivência humana e social, como as famílias e as escolas, e não faltam corifeus que alimentam a sua destruição e dizem, sem pejo, que assim deve ser. Quando coisas de todos se põem à discussão pública, muitas decisões já estão tomadas. Os feudos políticos com o mesmo patrão vão virando vespeiros, por vaidade ou ânsia de poder. As minorias de toda a espécie não procuram apenas o seu direito de ser, viver e a expressar-se, mas querem campo para se imporem, exigindo privilégios, palco e respeito que outros nunca terão, reagindo com orgulho às opiniões contrárias e não respeitando ninguém que não afine com o seu tom. Sempre têm gente do poder a dar-lhes avales, guarida e apoio, sem cuidado de ver o conjunto e as influências deletérias sobre o povo honesto e sério, que é maioria. Quando se fala de corrupção, logo há quem acrescente: “E não sabes tu metade do que se passa…”. Quando se mostra perplexidade em relação ao que de muito grave anda aí pelos tribunais, ouve-se, de imediato: “Mas tu ainda pensas que isso vai dar alguma coisa?” O povo parece que perdeu o rumo. Critica ferozmente o governo, mas tece loas ao chefe do mesmo. Diz que as coisas vão mal, mas porta-se como se estivéssemos no melhor dos mundos, onde tudo abunda sem limitações e perguntando por que privar-se do que agrada. As contradições multiplicam-se e vêm também de cima: o que ontem era mau, hoje é bom, para amanhã voltar a ser mau…Nada se resolve por via do humor fácil, da crítica ou das manifestações de rua, embora isto conte como entretenimento que desvia a atenção do mais importante, ou como coisa condenada à nascença. Voltou-se, na comunicação social, à voz do patrão. A esperança torna-se cada dia mais difícil, porque até ao que merece aplauso, e não faltam coisas que o merecem, se lhe esvazia o conteúdo e o sentido. Dois mundos a coexistir numa democracia que se empobrece, incapazes de diálogo, ambos depositários da verdade total e única. Muitos já desistiram, à espera que se volte a folha. Tudo, menos adiar o país. Há que dar conteúdo a uma esperança activa. Afinal, só esta pode fazer com que um dia o sol brilhe e seja sol que ilumine e aqueça a todos. Dar sinais de esperança, por difícil que seja, é condição para sobreviver hoje amanhã.

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